O encontro com Dom Filippo Santoro sobre o magistério do Papa Francisco (Foto: Patrícia Molina)

O magistério atual de Papa Francisco

Em São Paulo, um encontro com Dom Filippo Santoro para destacar e iluminar os principais pontos do pontificado atual. «A Igreja continua no tempo a presença do Senhor Jesus, da Sua Páscoa como fonte de vida que nunca mais termina»
Patrícia Molina

No dia 25 de fevereiro, aconteceu em São Paulo um momento de reflexão intitulado “O magistério do Papa Francisco: fundamentos e diálogo com o nosso tempo”. Durante o encontro, Dom Filippo Santoro, Arcebispo Emérito de Taranto, Itália, apresentou os fundamentos do magistério do Papa e destacou que aí ele retoma o conteúdo do Concílio Vaticano II e as contribuições dos papas São Paulo VI, São João Paulo II e Bento XVI, acentua os aspectos pastorais da doutrina cristã na perspectiva de comunicar a todos «a alegria do Evangelho». O anúncio do Evangelho resgata a dignidade de todos, em particular dos pobres, comunicando a esperança cristã que nasce do fascínio do encontro com o Filho de Deus, na vida de todos os dias. O evento foi transmitido para 120 cidades do Brasil.

Alexandre Ferraro, responsável nacional de CL no Brasil, abriu o evento dizendo que o Movimento e seu fundador, Monsenhor Luigi Giussani, são muito conhecidos pelo trabalho do livro O senso religioso (São Paulo: Cia. Ilimitada, 2023), que abre a possibilidade de diálogo com pessoas de diferentes credos e até mesmo de pessoas distantes da fé religiosa. Também segundo Giussani, o que caracteriza CL é a ideia do cristianismo como “acontecimento”, o acontecimento de Deus que entra na vida do homem e na história como Redentor e continua presente através da unidade daqueles que O seguem na comunidade cristã, através da Igreja. Alexandre lembrou também uma passagem do livro de Alberto Savorana, Luigi Giussani: A sua vida, que relata um encontro de Giussani com o Papa São João Paulo II no qual o Pontífice comenta que a coisa mais importante na Igreja é o amor à verdade, e Dom Giussani acolhe a palavra do sucessor de Pedro e reconhece nele o supremo sinal da unidade que confirma a fé dos fiéis. Segundo Ferraro, esse relato ajuda a entender como Giussani se relacionava filialmente com o Papado, com o Magistério Petrino.

Dom Filippo Santoro e Alexandre Ferraro

Dom Filippo Santoro foi nomeado em 2021 Delegado Especial do Papa para acompanhar os Memores Domini, associação de leigos de Comunhão e Libertação que dedicam a vida a Deus na obediência, na virgindade e na pobreza evangélica. Papa Francisco manifestou em várias ocasiões a sua estima para com os Memores e a Fraternidade de CL, como por exemplo na audiência da Praça São Pedro, em 15 de outubro de 2022, e na audiência concedida em 30 deste janeiro a Dom Filippo e ao Presidente da Fraternidade de Comunhão e Libertação, Davide Prosperi, ao qual enviou uma preciosa carta expressando todo o seu encorajamento pelo caminho atual do Movimento e convidando-o a salvaguardar o precioso dom da unidade.

As mídias sociais multiplicam notícias sobre a Igreja e sobre o papado que geram dúvidas e uma certa inquietação. O encontro com Dom Filippo foi uma oportunidade de conhecer melhor o pensamento do Papa, esclarecer as dúvidas e entender os fundamentos do seu magistério.

Segundo Santoro, o primeiro ponto para compreender melhor o Papa Francisco é entender a sua formação de jesuíta, que se baseia sobretudo nos Exercícios Espirituais de Santo Inácio de Loyola. «É uma formação rigorosa, forte, muito sólida, que está no DNA do Papa». Os Jesuítas foram aqueles que impulsionaram a missão em todas as partes do mundo. Por isso o Papa sempre insiste no ímpeto missionário, porque agora é o momento do testemunho dos leigos na vida do mundo, manifestando a beleza do Evangelho nos vários ambientes onde vivem. Deste aspecto nasce a estima do Papa para com o movimento de CL.

O segundo elemento que fundamenta o magistério do Papa Francisco é bem específico da Argentina: “A Teologia do Povo” de vários teólogos, como Lucio Gera e Juan Carlos Scannone e Alberto Methol Ferré, a qual se diferencia da Teologia da Libertação desenvolvida no Brasil e em outros países da América Latina. A Teologia do Povo sustenta a opção preferencial pelos pobres, mas não se baseia na análise social do marxismo e na luta de classe política para a conquista do poder. A Teologia do Povo parte da religiosidade popular e da fé como possibilidade de mudança concreta do coração, desenvolvendo uma nova cultura do povo baseada na dignidade irrepetível da pessoa humana e na solidariedade. É tarefa do Estado oferecer os necessários subsídios para o desenvolvimento em vista do Bem Comum. Santoro ressalta que o sujeito da Teologia do Povo é o “povo fiel”, que acredita na presença de Cristo, Redentor do Homem, e na construção de uma sociedade pluralista e pacífica. Isso se traduz numa cultura da justiça, da solidariedade e da paz.

A transmissão do encontro em Belho Horizonte

«O primeiro encontro que fiz quando fui nomeado bispo, antes mesmo de ser consagrado, foi em Buenos Aires. Quem dirigia o encontro era o bispo-auxiliar de Buenos Aires, Jorge Mario Bergoglio. Já naquele tempo ele falava das periferias. Dizia que se enxergam as coisas melhor a partir da periferia que do centro para uma visão completa da realidade. E acrescentava que isto vale para a vida da Igreja na América Latina, como da sociedade e do mundo».

Para Dom Filippo Santoro, o terceiro elemento que ajuda a entender o magistério de Papa Francisco é a Conferência de Aparecida de maio de 2007, que tinha como objetivo central analisar a complexa situação social, política e eclesial dos povos latino-americanos à luz da fé. Esta Conferência foi inaugurada por Bento XVI, que na abertura destacou que o cristianismo se difunde por uma atração e não por proselitismo.

«Essa afirmação, feita por Papa Bento XVI, foi retomada muitas vezes por Papa Francisco no seu magistério. Diferentes vozes dizem que este Papa está alterando a doutrina e a vida da Igreja. Na realidade, o Papa atual é um fiel filho da Igreja Católica e desenvolve do ponto de vista pastoral e com um estilo pessoal o magistério de Paulo VI, João Paulo II e Bento XVI. O Papa Francisco acentua essas contribuições numa relação direta com o povo de Deus. Não que os outros apresentassem somente o aspecto dogmático sem o pastoral, mas ele acentua o aspecto pastoral ligado aos desafios da vida de todos os dias, sem alterar o conteúdo dogmático da Igreja.

«Deve-se também considerar que a imprensa leiga e totalmente secularizada põe em evidência só as afirmações do Papa ligadas ao ambiente, aos problemas sociais, econômicos e ao grande tema da Paz, pelo qual é também criticado. Ninguém cita as suas duras críticas à teoria de gênero, por exemplo.

«Na conferência de Aparecida, Jorge Mario Bergoglio, naquele momento Arcebispo de Buenos Aires, foi eleito pelos bispos como Presidente da comissão que iria preparar o documento final da Conferência. E eu também fazia parte dessa Comissão. A primeira versão do documento final tinha uma abordagem essencialmente sociológica. No momento central da Conferência o arcebispo Bergoglio fez uma moção contraria a esse documento ressaltando, entre outras coisas, que a realidade é duríssima e se partimos dela ficamos sufocados. Portanto, o ponto de partida de todo o documento deveria ser a fé dos discípulos missionários, a partir da adoração da Santíssima Trindade. A moção de Bergoglio também destacava a gratidão pela evangelização da América Latina, mas pontuava que o cristianismo tem que mostrar a sua capacidade de iluminar todos os aspectos da vida e julgar os males da região. Assim, no documento final foi posta aos votos uma premissa importante, uma premissa que punha em evidência a fé crista, ponto de partida original das Igrejas da América Latina. E assim ficava explicitado o título do Documento final: “Discípulos missionários para que os nossos povos tenham vida”. A moção foi aprovada e a intervenção de Bergoglio foi determinante em indicar o rumo de toda a Conferência. Por isso, dizer que o Papa é comunista é algo fora de cogitação. O fundamento de sua posição teológica é o puro Evangelho. Ele inclusive sofreu muitas críticas de números teólogos por esse documento», revela Santoro.



O Arcebispo Emérito de Taranto explica que foi tão forte a experiência de Aparecida, que ela teve grande influência no primeiro documento apostólico do Papa Francisco: a Exortação Apostólica Evangelii gaudium.

«Metade desse documento, que se tornou o texto fundamental do magistério do Papa, é baseado na Conferência de Aparecida, a outra metade é baseada no documento de Papa Paulo VI Evangelii nuntiandi, sobre a missão da Igreja. No Documento Evangelii gaudium (n.7) Papa Francisco cita um texto admirável de Papa Bento XVI que afirma: “Ao início do ser cristão, não há uma decisão ética ou uma grande ideia, mas o encontro com um acontecimento, com uma Pessoa que dá à vida um novo horizonte e, desta forma, o rumo decisivo”, fala que o Cristianismo não se identifica na sua essência com questões éticas, mas é essencialmente o encontro com a pessoa de Cristo vivo hoje na Igreja. Papa Francisco, permanecendo ligado ao magistério dos seus predecessores, também retoma o grande tema da Misericórdia, enfatizado por São João Paulo II, e lança a toda a Igreja o Ano Santo da Misericórdia».

Santoro explica que o Papa aprofunda e desenvolve o tema central do anúncio do Evangelho não só às pessoas e aos povos, mas também à natureza e à criação. Assim, em 2015 ele publicou a Encíclica Laudato si’, que fala sobre o «cuidado com a casa comum». O Papa afirma que não existe uma questão ambiental separada de uma questão social, mas que estamos diante de uma única crise antropológica que destrói os aspectos sociais e os ambientais. O Papa desenvolve assim uma “ecologia integral”. Ou seja, não se pode falar da natureza separada do homem, desconsiderando o cuidado com o homem, chamado por sua vez não a destruir, mas a custodiar a terra. A Laudato si’ e a visão de uma ecologia integral abriram as portas para o diálogo com o mundo sobre a questão ambiental. No documento enviado pelo Papa Francisco à conferência de Paris (Cop 23), ele destaca que é preciso mudar a relação com o meio ambiente, de uma relação violenta de exploração para visão evangélica que considera o meio ambiente um dom, uma graça. Aprofundando a Laudato si’, o Papa escreveu também a Encíclica Fratelli tutti sobre a fraternidade e a amizade social, e a Exortação Apostólica Laudate Deum, sobre a crise climática global, na qual ele critica o paradigma tecnocrático separado do valor da consciência humana e um desenvolvimento científico e ambiental separado do humanismo.

No n. 67 deste documento, afirma: «A cosmovisão judaico-cristã defende o valor peculiar e central do ser humano no meio do maravilhoso concerto de todos os seres, mas hoje somos obrigados a reconhecer que só é possível defender um “antropocentrismo situado”, ou seja, reconhecer que a vida humana não se pode compreender nem sustentar sem as outras criaturas. De fato, “nós e todos os seres do universo, sendo criados pelo mesmo Pai, estamos unidos por laços invisíveis e formamos uma espécie de família universal, uma comunhão sublime que nos impele a um respeito sagrado, amoroso e humilde”». E o número 68 afirma: «Isto não é um produto da nossa vontade, tem outra origem que se encontra na raiz do nosso ser, pois “Deus uniu-nos tão estreitamente ao mundo que nos rodeia, que a desertificação do solo é como uma doença para cada um, e podemos lamentar a extinção de uma espécie como se fosse uma mutilação”. Assim, acabamos com a ideia de um ser humano autônomo, onipotente e ilimitado, e repensamos a nós próprios para nos compreendermos de maneira mais humilde e mais rica».

Dom Filippo Santoro enfatizou que não existem mudanças nos dogmas da Igreja no magistério do Papa Francisco. «Não existe mudança alguma. O que é branco é branco, o que é preto é preto. O dogma não se toca. O que Papa Francisco mais desenvolve é a relação com os indivíduos e os povos. Como chegar perto das pessoas e abrir o diálogo com elas? A imagem que mais expressa esse diálogo é o poliedro, isto é, existem vários aspectos da realidade que devem ser considerados juntos e iluminados pelo aspecto dogmático, que não pode ser mudado».

Ele esclareceu o ponto sobre as bênçãos aos divorciados e casais homoafetivos, apresentado no documento da Congregação para a Doutrina da Fé Fiducia suplicans. «O Papa diz claramente que a bênção que pode ser dada é pessoal, ad personam, e não é uma bênção nupcial que só pode ser dada no sacramento do matrimônio. A casais divorciados ou homoafetivos não podem ser dadas bênçãos sacramentais que se recebem na liturgia do casamento. Diferente é o caso de uma pessoa que está vivendo uma situação difícil de saúde física ou psicológica e procura um padre pedindo a bênção para conseguir a saúde física e psicológica, ou que está enfrentando um problema particular. Aí se recebe a bênção de Deus nessa dificuldade e nesse problema. Até um casal que, porém, não pede bênção nupcial e sacramental pode receber a ajuda do Senhor, que não abandona ninguém no sofrimento ou no caminho de una conversão plena. A bênção do padre, que se pode chamar de bênção pastoral e não sacramental, é uma invocação de ajuda ao Senhor em situações difíceis, não tem nada a ver com bênção litúrgica e nupcial. Nesse sentido, o Santo Padre acentua a misericórdia sem fazer confusão. A Igreja continua no tempo a presença do Senhor Jesus, da Sua Páscoa como fonte de vida que nunca mais termina», conclui.