20 de agosto de 1822
Aos pés de Maria, o príncipe deposita a decisão que mudaria nossa história, num gesto tão grande quanto escondido. Num tempo fragmentado, «uma narrativa fundante propõe uma hipótese: a glória de uma criatura quebrada, sinal de liberdade e confiança»Vivemos no Brasil, país que valoriza a ligação com a própria terra e ao mesmo tempo tem simpatia pelo conjunto das nações. Nos 200 anos de nossa independência, cabe pensar em nossa identidade nacional, na contribuição de nosso povo ao bem comum das nações. Qual a riqueza dada a nós, pela história, para o bem de todos? O que é para todos, mas a nós confiado?
Há mil formas de responder a essa pergunta, diferentes narrativas apresentando conclusões díspares. Mas nem toda história é fundante de um povo. Nem toda narrativa tem o poder de sobreviver gerações e mobilizar. Permitam-me sugerir uma história fundante desta nossa terra que ainda precisa ser descoberta na sua força de dialogar com pessoas de qualquer nacionalidade, raça, religião. Uma história, ao mesmo tempo, real e simbólica. Refiro-me à Nossa Senhora Aparecida.
Aqui o leitor pode querer não continuar, uma vez que associa essa história com apenas um aspecto do Brasil: sua catolicidade. Vale, porém, lembrar que uma história fundante carrega necessariamente consigo os adornos de uma especificidade e, ao mesmo tempo, apresenta o conteúdo de uma universalidade. O pormenor é tão revelador do mistério humano que se torna ponto de atração para todos.
Recuperemos, com abertura e disponibilidade, as narrativas que as gerações nos entregaram e perguntemo-nos o que isso tem a nos dizer hoje sobre a nossa identidade. Para mim esse caminho teve início quando, há 30 anos, no interior da floresta amazônica, encontrei uma velhinha que vivia sozinha, distante horas de qualquer vilarejo, e me perguntou com inveja: «Você já foi a Aparecida?» Anos depois, numa roça do interior do Espírito Santo, um caboclo idoso e solitário, exclamou ao saber de onde eu vinha: «Você mora perto de Aparecida!»
Em um dia de outubro de 1717, pescadores pescaram uma estátua de argila, num rio de “águas ruins”. Ela estava quebrada, sem cabeça, já escurecida pelos anos que passara na lama do leito do rio. Depois jogaram as redes e, surpresos, recuperaram a cabeça. O assombro os assaltou quando, em seguida, lhes aconteceu uma pesca abundante, inusitada para aquelas águas.
A fama da estatuazinha se espalhou graças a fatos inexplicáveis que passaram a ocorrer. O povo simples atribuía-os a uma intervenção divina, um presente dado pelos céus a essa gente distante dos grandes centros. A narrativa dos primeiros milagres é extremamente reveladora do significado que essa história viria a adquirir: velas que se apagam e se acendem; uma menina cega que volta a ver; um senhor arrogante cujo cavalo se inclina diante da santa; um escravo que tem suas correntes desfeitas. A luz e a liberdade, contra o descaso dos poderosos, visitavam a terra.
Nas décadas seguintes cresceu enormemente a sua fama, a ponto do príncipe regente, em viagem da capital para a cidade de São Paulo, em 20 agosto de 1822, resolver parar na aldeia e entrar na igreja construída para acolher a santinha. Ajoelhou-se e rezou pelo Brasil e por uma decisão que precisava ser tomada. Duas semanas depois, ele proclamava a independência. Nascia um país aos pés daquela coisinha de barro, frágil, quebrada e remontada, escurecida.
Essa estatuazinha representa quem? Uma mulher do primeiro século, uma judia típica, nascida e educada como eram educadas as mulheres do judaísmo do segundo templo. Hoje, em seu trono, podemos vê-la rodeada das grandes mulheres da tradição judaica: Eva, Sara, Rebeca, Lia, Raquel, Míriam, Débora, Rute, Ana, Abigail, Judite e Ester. A feminilidade constitui o núcleo central da basílica. Mulheres, progenitoras do povo brasileiro, não só pela fé, mas também pelo sangue. Afinal relembram uma história tão pouco conhecida, a dos cristãos novos, judeus forçados a se converterem, gente perseguida e ameaçada, que viram na nova terra, longe da vigilância sobre os conversos da inquisição portuguesa, a possibilidade de florescerem. Muitos dos nossos colonos portugueses eram filhos de Israel.
Essa estatuazinha chama atenção por não ser uma grande obra de arte, muito diferente das lindas imagens barrocas portuguesas e das obras-primas de Aleijadinho. Ela segue pobremente os padrões da cultura que a gerou. A natureza brasileira refez o que o desconhecido artífice criara, escurecendo a terracota original. E nosso povo índio e negro, mestiço e pardo, se identificou. Viram uma nobre senhora como eles. Como nós.
Talvez o significado mais impressionante da imagem aparecida esteja na sua própria história. Jogada fora num rio, desprezada porque quebrada, foi encontrada e valorizada. Remendada, tornou-se resplendente. Já no século XX um “louco” tentou destruí-la, novamente quebrando-a, agora em estilhaços. Para que nada se perdesse, o povo devoto varreu o chão, cheio da poeira trazida pelos pés dos romeiros, e juntou os cacos com essa poeira, entregando-os a uma especialista, sem fé, para ser reconstruída. E a artista o fez, com primor, ao mesmo tempo em que observava em si uma mudança. Devolveu-a a seu povo, com remendos rejuntados pela cola e o pó, novamente inteira. A imagem ou a artista?
Em tempos de fragmentações que pedem uma solução, de desaparecimento de antigas certezas, de aventuras messiânicas, nacionalismos tóxicos, uma narrativa fundante de nossa história nos propõe uma hipótese: a glória de uma criatura quebrada, desprezada, negra, mulher, judia, sinal de liberdade e confiança, da maternal bondade do Criador. A música popular não religiosa (ou autenticamente religiosa) expressa bem a mendicância esperançosa que Aparecida gera no espírito humano: «Ilumina a mina escura e funda, o trem da minha vida».
Cabe lembrar um último símbolo, mais um entre os vários não mencionados. Quando um artista termina sua obra e, comovido, olha o produto de suas mãos, que excede suas expectativas, contempla em silêncio o que acaba de nascer, infinitamente menor que ele, mas gigantesco sinal de si. Da mesma forma, esta imagem de Aparecida retrata o primeiríssimo instante da vida de Maria, sua concepção, momento em que o Criador, olhando-a, cantou «tota pulchra es», és toda linda e não há defeito em ti! (palavras do Cântico dos Cânticos, livro da Tanach, o Antigo Testamento, usadas na liturgia de sua festa). A questão sobre a identidade é, assim, metamorfoseada, encontrando não uma resposta, mas uma sugestão de método: «Se quiseres entender o que és, não olhes para o que foste, mas para a imagem que Deus teve ao te criar» (Evágrio, monge, séc IV).
Um povo nasce de indivíduos que chegam a perceber o próprio eu e se juntam para cuidar dessa descoberta. Eis a tarefa que nos espera nos próximos 200 anos.