Salvador. Uma novidade para a vida

A experiência do Movimento da capital baiana no aniversário da comunidade. Trabalho, família, estudo. Uma provocação para enfrentar toda a realidade reconhecendo o rosto concreto de Cristo

Há 30 anos iniciava a vida do movimento Comunhão e Libertação em Salvador, com a chegada em fevereiro de 1989, do então padre João Carlos Petrini, hoje Bispo de Camaçari. Um mês depois acontecia o primeiro retiro de Páscoa, já com as características próprias de Comunhão e Libertação. Desde então essa vida prossegue. Em abril, Otoney Alcântara, responsável de CL na Bahia, conduziu algumas perguntas num diálogo público com alguns amigos para entender o papel e o valor do carisma no momento histórico atual. A seguir, algumas notas do encontro.

Qual a motivação que o levou a fundar CL em Salvador e, após 30 anos, o que o carisma tem a dizer à sua vida?
João Carlos Petrini, Bispo de Camaçari/BA


O fundador do Movimento é só um, e se chama Luigi Giussani, e nós somos apenas portadores do dom que recebemos. Eu conheci Comunhão e Libertação em 1965, no final do ensino médio, na Itália, e esta caminhada me trouxe através de diversas etapas, até a Bahia. Dentro da realidade eu posso reconhecer, de uma maneira insistente, persistente, teimosa e expansiva, uma iniciativa de Deus, não só na minha vida, mas na vida das pessoas que tiveram interesse, curiosidade e finalmente adesão àquela proposta de Giussani, do carisma de Comunhão e Libertação. A primeira coisa que me impressiona e que seguramente me motivou foi a experiência de me sentir escolhido por Deus, chamado por Ele, chamado a esta vida, não somente ao Batismo, mas a uma maneira de compreender a Sua presença divina na nossa realidade de forma mais profunda, humanamente mais significativa. É a experiência de uma verdadeira preferência de Deus. Então, a origem da minha chegada ao Brasil e da minha chegada à Bahia, é uma tentativa de responder a essa preferência. E eu sempre falei para as pessoas que eu ia encontrando, no início e agora mais ainda, que esta era uma convocação. Chamado a um caminho especial, com um dom especial, mas também para abraçar uma tarefa especial, juntamente com outras pessoas, até com aquelas que não estão mais conosco, porque é como se nunca tivessem saído do horizonte da minha vida por causa deste chamado juntos a responder a tarefa que me foi confiada. É uma possibilidade de vida nova que pega em primeiro lugar o meu próprio eu, a minha sensibilidade, a minha inteligência, a minha afetividade, o meu coração. E então é a experiência de humanidade que se renova pela Graça de Cristo encontrado de uma maneira tão viva como nunca antes tinha acontecido. Mesmo agora como Bispo, preciso encontrar espaço nas atividades para me encontrar com o grupo do Movimento. Um espaço para compartilhar o que para mim é o mais precioso. Queria também dizer que no fundo o que eu queria não é uma companhia para vencer o medo da vida, pois a vida às vezes assusta, ou para vencer a solidão, para “tomar um café em companhia”, como dizia Giussani, mas uma companhia para reencontrar o rosto humano de Cristo entre nós. É uma convocação que me coloca diante da presença de Cristo dentro de um contexto carnal, e como continuidade daquele mistério da encarnação. Talvez seja possível viver isso em outros lugares, mas eu encontrei essa possibilidade somente quando encontrei o carisma de Giussani. Por quê? Por causa de um método específico que torna possível o reconhecimento de Cristo como a alma mais secreta, mas mais profunda e verdadeira de toda circunstância, de todo encontro pessoal, de toda atividade, de tudo aquilo que vivemos. E a partir deste olhar é que a gente aprende, pouco a pouco, a reconhecer os sinais da Sua presença divina. Assim, a vida fermenta e cresce e nos tornamos capazes de fazer coisas que jamais poderíamos imaginar.



Você foi uma das últimas pessoas que chegaram ao Movimento em Salvador. O que encontrou e qual novidade isso introduziu na sua vida?
Verônica Nascimento Pereira, pedagoga


Eu participava de um projeto profissionalizante e, ao terminar este curso, a coordenadora me convidou para a Escola de Comunidade. Trabalhando o texto, me marcou profundamente que falava que era possível uma vida autêntica agora, e era justamente o que eu queria. Eu achava a minha vida muito parada e sem sentido. E a partir daquela Escola de Comunidade essa foi uma coisa que eu desejei pra mim. Outro convite foi para ir à missa. Eu sempre fui católica, ia à missa às vezes, mas a partir dali passei a ir à missa todos os domingos. E também, a partir da Escola de Comunidade, eu entendi que levando a minha vida mais a sério eu poderia encontrar um sentido para ela, um significado. E continuei participando mesmo sem entender direito, às vezes brigando com o texto, mas fui encontrando outras pessoas, adultos, em quem eu via essa seriedade, que falavam desta experiência, então se foi possível para eles era possível para mim também encontrar esse sentido. Outra coisa foi a caritativa. Eu comecei a ir ao hospital da Irmã Dulce, primeiro porque queria estar com aquelas pessoas que iam lá. Depois entendi que não íamos ali para preencher uma necessidade dos doentes, mas porque a gente também necessita de se doar, de dar o nosso tempo para o outro. Então não parei mais de ir. Depois vieram outros gestos, como os retiros e as férias. A primeira vez que fui às férias me marcou porque eu me dava conta que não era algo de um final de semana que acabava. Era algo que era para toda a vida. E a partir dali não deixo de ir às férias, porque eu quero encontrar, quero ouvir alguma coisa que me ajude a caminhar. Nunca posso dizer “pronto, agora já sei”, mas a cada gesto eu vou descobrindo ainda mais o sentido da vida e porque eu existo. Sempre fui católica, mas eu não podia dizer “eu conheço quem é Cristo”. Mas, na missa lá da comunidade, entendi que Ele dá a vida d’Ele também por nós. Na verdade quem eu encontrei foi a Cristo e por encontrar a Ele eu encontrei a mim mesma. Caminhando também com essas pessoas, vejo que não é mais uma coisa separada, que eu vivo o Movimento, vivo o trabalho, vivo o estudo. É algo que encaixa tudo. A Escola de Comunidade me educa a olhar e viver as coisas – a minha realidade, o meu trabalho, o meu estudo, a minha família – e não mais a fugir das dificuldades. Ela me faz olhar, querer experimentar, viver. Dentro desse caminho, ouvir música também foi algo que mudou pra mim. Agora as músicas são escolhidas porque têm significado, e vejo que encontrei uma coisa que é para a vida toda, que caminha junto comigo. Sozinha eu não consigo viver nada. Aqui foi onde eu reconheci o rosto d’Ele, foi onde eu senti a presença de Cristo. Tudo agora me fala d’Ele, meu trabalho, minha graduação em pedagogia, nada é óbvio. O Movimento trouxe pra mim uma vida cheia de significado. Posso dizer que eu encontrei Aquele que é o caminho, a verdade e a vida.



O senhor tem amizade há alguns anos com pessoas do nosso carisma. Pessoalmente, o que interessa ao senhor no carisma? Qual a contribuição que o carisma pode dar à Igreja?
Padre Maurício da Silva Ferreira, Reitor da Universidade Católica do Salvador (UCSal)


Eu recebi o catolicismo tradicional de meus avós e meus pais. No Seminário encontrei o padre Petrini, na época, e tendo encontrado essa pessoa, cheguei ao livro Por que a Igreja, de Dom Giussani, e esse foi um livro que me mudou, me respondeu. Eu tinha algumas questões e por isso os encontros com Petrini na sala de aula me libertaram, e é algo que me ajuda até hoje. Primeiro, me ajudou a entender que a Igreja é passível de uma ideia, de uma auto compreensão sobre si, é passível de amor. Até então ninguém tinha me dito isso, que o corpo de Cristo era passível de amor. Eu tinha entendido que eu pertencia a uma organização. E vendo estas setas lembro-me dos desenhos que ele colocava lá no quadro. E isso me trouxe um segundo elemento importantíssimo. Eu, Maurício, não tinha me dado Deus. Deus não resultava da ideia psicológica sobre Ele. Deus é autônomo e livre. Usa a psicologia, usa o sonho, usa as riquezas e grandezas do mundo, mas Deus não é a natureza. Parecem coisas bobas, mas foram coisas muito importantes para mim. Era uma questão fundamental saber que eu não criava Deus, e que a Igreja não era um resultado. E eu quis continuar a leitura dos livros de Dom Giussani, o que me livrou inclusive de uma leitura moralista da Igreja. Se a visão da Igreja se reduz a uma questão moral, você é uma pessoa que faz, faz, faz, mas não se constrói enquanto está fazendo. Conhecer o Movimento, as pessoas, as obras, o carisma, me trouxe uma nova possibilidade. Algo que me tocou muito forte é que algumas vezes me chamavam para celebrar a missa do Movimento e era a missa em que eu mais podia falar com clareza sobre o Evangelho, sem medo, é como se não fosse estranho. E não preciso ficar dando muitos passos catequéticos, tem uma intimidade. Tem as músicas e uma comunhão de coisas que ajudam a levar a liturgia ao que interessa. Vejo uma experiência bonita que existe entre vocês e desejo que se expanda e possa florir mais nos ambientes. Agradeço pelo bem que a vida de Dom Giussani trouxe à Igreja, e agradeço por esta amizade que vem desta divisão de uma paixão comum por Nosso Senhor Jesus Cristo.



Como o carisma de Dom Giussani incide no seu trabalho e no modo como vive a sua família?
Fabrizio Pellicelli, diretor da AVSI na América Latina


É importante colocar que o Movimento não tem obras. Dom Giussani teve a intuição de educar homens e mulheres através do carisma inserindo nas pessoas do Movimento este desejo de estar na realidade olhando a necessidade de dar uma resposta e assim criaram estas centenas de obras espalhadas pelo mundo. Não é algo comum. Normalmente, em outros Movimentos, as obras são ligadas formalmente a eles, mas Dom Giussani fez uma escolha que eu acho muito mais radical, de investir nas pessoas. A partir do encontro com o carisma, do encontro com Cristo, abrir nas pessoas esse desejo de poder construir algo que seja sinal da presença de Cristo dentro da sociedade. Todos os dias no meu trabalho eu preciso fazer essa comparação. Se a provocação que eu vivo – que são situações às vezes extremas, pois a AVSI atua nas periferias do mundo – é um lugar em que existe uma resposta para mim. Ontem eu voltei de Roraima porque temos um trabalho importante lá com os venezuelanos e me informaram que estão chegando muitas crianças entre 10 e 14 anos sozinhas. E isso provoca uma pergunta enorme: Mas por que isso? E eu sei que é uma pergunta que tem uma resposta. E essa resposta para mim significa ainda mais mergulhar dentro da experiência do Movimento para poder perceber a resposta. Portanto, o primeiro ponto é apostar tudo na pessoa, numa realidade mudada que, por essa mudança, muda o mundo. E permanecendo no lugar onde esta mudança se concretiza sempre mais, continuará este entusiasmo. Dom Giussani e o Movimento me abriram a uma nova relação com a realidade. É como se nós tivéssemos antenas mais potentes para interceptar a realidade. Porque sabemos, como Dom Giussani nos educou o método, que a realidade é a forma com a qual Deus dialoga conosco. E isso impacta o trabalho, impacta o que gera o meu trabalho na modalidade de encontrar as pessoas, de construir coisas, de poder crescer. E dentro da concretude do trabalho de todo dia temos a possibilidade de colocar uma forma nova que fascina, que pode gerar simpatia, até o ponto em que as pessoas podem se perguntar: de onde surge essa novidade? Essa é a nossa realização: mostrar que no mundo acontece algo diferente. Sobre a família, sempre ouvi Dom Giussani falar do nexo entre o ser humano e o infinito, mas quando nasceu o meu filho, a experiência que fiz foi assim: “ele nasceu mas não é meu. Eu não sei o que vai acontecer com ele”. A família, como primeiro núcleo afetivo, é onde Deus dialoga conosco. Neste sentido, temos uma responsabilidade grande de mostrar a beleza das famílias do Movimento para mostrar que é possível, hoje, neste mundo louco, colocar a família como centro vital, afetivo e social. O Movimento pode nos dar isso, pois precisamos ver fatos. Fatos que nos educam na mentalidade cultural totalmente contrária à família. E a família é fundamental porque é onde a pessoa experimenta como se doa gratuitamente e como se doa ao outro. E sem estes dois fatores a vida não pode seguir.



Encontrando o Movimento nossa vida mudou. Como aquilo que nos aconteceu permanece com o tempo?
Marco Montrasi (Bracco), responsável nacional do Movimento Comunhão e Libertação


Como pode resistir a beleza que vivo com meus filhos? Como eu posso resistir se um dia parece que vai acabar tudo? Essa pergunta vale para tudo o que a gente vive porque parece que no tempo tudo enfraquece. Mas nos foi feita uma promessa. É possível um movimento contrário, que quanto mais passa o tempo, mais vai se cumprir, mais eu vou me aproximar da plenitude. Por isso me fascina ver as crianças, porque elas são elas mesmas, não tem nenhum espaço entre elas e elas mesmas. Só que quando a gente cresce, começamos a criar algumas defesas, a desenvolver uma certa habilidade de criar máscaras, de não ter essa pureza original que nós tínhamos quando éramos crianças. O Papa dizia uma coisa que me marcou muito. As crianças sempre perguntam o porquê. E uma pergunta puxa a outra. E o Papa falava que na verdade aquilo que interessa às crianças não são as respostas, porque cada resposta que é dada não basta. Aquilo que elas procuram é um vínculo, é um relacionamento, é ter na frente aquele olhar. Então, com o tempo que passa, aquilo que nós perdemos é essa clareza de que nós precisamos deste olhar como a criança precisa do olhar dos pais. Achamos que com o tempo nós podemos dar um jeito em tudo aquilo que temos que fazer. Só que sem querer, aos poucos, nos afastamos daquilo que nos gera. Como uma criança é gerada continuamente por esse olhar, também um adulto se não for gerado continuamente por esse olhar começa a ficar árido, fica triste. Também 30 anos de história podem não ser nada se não acontece de novo uma faísca. Que é dentro desse vínculo, como as crianças têm com os pais. Esses 30 anos podem ser nada ou 30 anos podem acender de novo esse vínculo. Isso é fantástico. É como se o tempo ganhasse outra dimensão. É outra coisa que está em jogo. É como se tudo se jogasse num instante, agora, se eu tenho um vínculo, um olhar, que me gera agora. Este eu acho que é o nosso desafio: quem eu tenho hoje que me faz vibrar, que me faz viver de novo? Pode ter alguém aqui que não aparecia há 20 anos. Mas quando reacontece uma vibração, é como se toda a história se juntasse de novo. Quando acontece um encontro através de um temperamento, através de um acento particular, toda a história se junta, e te faz chegar até aqueles momentos em que João e André encontraram Jesus. Não só lembranças de quando eu encontrei Dom Giussani ou quando vocês encontraram os primeiros do Movimento. É uma revolução da dinâmica da história que acontece. É como se o que eu vivi voltasse a viver hoje. Vibra hoje. Então, a primeira coisa é que agradeço por ter um lugar que me lembra sempre disso. E para mim é impressionante ver o Carrón, que é o responsável hoje do Movimento, que com a sua vida e o seu testemunho me coloca continuamente na frente deste trabalho. Isso recupera toda a minha vida hoje, sem precisar ter medo. Temos que nos tornar de novo como crianças, conquistar algo da criança. Mas o adulto, na maturidade, acontece algo que é mais do que ser criança, porque acontece o cêntuplo. Mesmo com tudo o que viveu, com todas as suas traições, com toda a fraqueza que você carrega, com todos os limites, o cêntuplo é poder falar: mas o que me aconteceu? Como é possível que volte? Todas essas perguntas são as perguntas do cêntuplo. E não te escandalizam, mas te comovem. É como Pedro: “Senhor, não sei como, mas eu Te amo”. Tinha tudo o que ele fez, tudo o que ele era, mas havia o estupor daquela Presença presente. A promessa é poder viver isso hoje. A última coisa é a tenacidade de um caminho, que é algo difícil para nós: se encontrar toda semana, fazer um caminho pessoal. Essa é uma fadiga que temos que combater juntos. Tudo tende a te afastar do teu eu e destas perguntas. Mas quando reacontece isso é simples reconhecer que é aquilo que procuramos.

(Notas não revisadas pelos autores das colocações)

(Texto publicado inicialmente na Revista Passos, maio/2019)