Retrato do Padre José de Anchieta, por Benedito Calixto de Jesus.

José de Anchieta e o desafio de ampliar a razão

No dia 9 de junho celebramos São José de Anchieta. Buscando conhecê-lo melhor, publicamos aqui um texto do arquivo da Revista Passos
Marina Massimi

José de Anchieta, que estudou retórica, gramática e filosofia na Universidade de Coimbra, com os mais importantes humanistas portugueses, ao se deparar com a realidade dos novos mundos foi colocado diante do desafio de ampliar a sua razão para entender aquela nova realidade em que fora mergulhado. Em sua vida missionária deparou-se entre a alternativa desta presença inteligente e atenta ou uma posição voluntarista – presente inclusive ao interno da Companhia de Jesus – marcada pela ênfase no uso da força e pela imposição do projeto missionário.

OS ESTUDOS E A VINDA PARA O BRASIL
Nascido no ano de 1533 em São Cristóvão na ilha de Tenerife, no arquipélago das Canárias, Anchieta, aos catorze anos, foi para Coimbra estudar Filosofia e Direito. Lá encontrou a Companhia de Jesus, então recém-fundada por Inácio de Loyola, e onde ingressou em 1551, como Irmão leigo. Enviado ao Brasil, aqui chegou em 1553, com menos de 20 anos de idade, junto com outros padres. De início, não veio por um anseio missionário, mas sim por motivos terapêuticos, pois estava muito doente em Portugal e alguns missionários relatavam que no Brasil o clima era muito agradável e propiciava a cura de determinadas doenças.

Uma vez na Terra de Santa Cruz, se envolveu profundamente na ação e na compreensão do novo contexto, sem nunca deixar de ser o intelectual que já tinha se delineado em sua estadia em Coimbra. Por seus dotes literários foi escolhido para redigir as numerosas cartas que o responsável da missão do Brasil, Manoel da Nóbrega, enviava periodicamente ao Padre Geral, ao Provincial e aos companheiros, e Anchieta continuará escrevendo cartas a vida toda, mesmo depois de eleito Provincial.

A FUNDAÇÃO DE SÃO PAULO
Nos primeiro anos de sua vida no Brasil, Anchieta esteve presente na fundação do Colégio de São Paulo, no planalto de Piratininga, embrião da futura metrópole, em 25 de janeiro de 1554. O colégio não se tratava de uma comunidade de colonos, conforme as prescrições e os planos da Metrópole, mas de um projeto próprio dos jesuítas, que não contava com a aprovação nem do Governador Geral nem do Provincial de Lisboa. Tratava-se de um lugar não destinado aos colonos e sim aos índios e por isto situado num ponto de confluência das populações indígenas, próximo das aldeias dos chefes indígenas Tibiriçá e Cayubi.

Anchieta escreveu que a casa de Piratininga, que "construíram os próprios índios para nosso uso", era por sua pobreza muito semelhante ao estábulo de Belém: "Desde janeiro até ao presente, estivemos às vezes mais de vinte numa casa pobrezinha, feita de barro e paus, coberta de palha, de 14 passos de comprimento e 10 de largura, que é ao mesmo tempo escola, enfermaria, dormitório, refeitório, cozinha e dispensa. Não temos saudades das casas amplas que os nossos habitam noutras partes. Com efeito, em mais estreito lugar foi posto Nosso Senhor, Jesus Cristo, quando se dignou nascer num pobre presépio entre dois brutos animais e em estreitíssimo morrer por nós na cruz" (A Inácio de Loyola, de Piratininga, em 1554).

Apesar das dificuldades, reconhece em Piratininga o lugar de sua plena saúde: "Até agora sempre tenho estado em Piratininga, que é a primeira aldeia de índios, que está 10 léguas do mar, como em outras cartas tenho escrito, em a qual estarei por agora, porque é terra mui boa: e porque não tinha purgas nem regalos de enfermaria, muitas vezes era necessário comer folhas de mostarda cozidas com outros legumes da terra e manjares que lá podeis imaginar, junto com entender em ensinar gramática em três classes diferentes; e às vezes estando dormindo me vêm a despertar, para fazer-me perguntas; e em tudo isto parece que saro, e assim é, porque em fazendo conta que não estava enfermo comecei a estar são, e podeis ver minha disposição pelas cartas que escrevo, as quais parecia impossível poder escrever estando lá".

Frente ao desafio que a nova realidade significa, Anchieta foi construindo novos conhecimentos muito simples, mas muito concretos. Aqui podemos ver um exemplo de sua capacidade de usar a razão: voltada para a ação, atenta à realidade e às suas necessidades, disponível para a aprendizagem de novas e inusitadas competências: "Neste tempo que estive em Piratininga servi de médico e barbeiro, curando e sangrando a muitos daqueles índios, dos quais viveram alguns de quem se não esperava vida, por serem mortais muitas daquelas enfermidades. [...] Demais disso tenho aprendido um ofício que me ensinou a necessidade, que é fazer alpargatas, e sou já bom mestre e tenho feitas muitas aos Irmãos, porque se não pode andar por cá com sapatos de couro pelos montes".

UMA RAZÃO ABERTA À REALIDADE
São vários e frequentes os acenos às condições concretas da permanência no novo contexto e as informações detalhadas e recorrentes acerca da vida quotidiana dos missionários, tais como vestuário, alimentação, moradia. Anchieta adquiriu uma capacidade crítica a respeito da condição de vida anterior, de "lá", sua própria e dos companheiros. Com efeito, ao descrever os trabalhos por ele desenvolvidos, Anchieta põe em evidência como a própria escolha das tarefas a serem empreendidas depende da avaliação das necessidades concretas do campo social. Referindo-se a si próprio e aos demais companheiros, Anchieta escreve que eles “nunca cessam de noite e de dia de socorrer aos índios com o espiritual, confessando-os e batizando-os e com o corporal, sangrando-os e curando-os, segundo a necessidade de cada um" (a Laynes em Roma, de São Vicente, 1565).

Ao mesmo tempo, Anchieta continua a praticar as competências intelectuais adquiridas em Coimbra, e à luz das circunstâncias do novo contexto torna-se mais criativo. Aprende a língua da terra e dá aulas de gramática para os meninos índios. O termo deste processo será a transcrição da gramática dos tupis-guaranis (na origem exclusivamente oral) num livro que é importantíssimo para a história do Brasil: a “Gramática das línguas mais faladas nas costas do Brasil”, publicado no fim do século XVI. Este livro contribuiu para a formação e transmissão daquela que foi a língua geral do Brasil, forma de tupi simplificado e falado por todos os habitantes do Brasil, até a proibição pombalina em meados do século XVIII. Escreve também um catecismo em língua tupi em forma de diálogo (Diálogo da fé) – conforme a tradição intelectual humanista que utilizara o gênero do diálogo de origem platônica na área moral e filosófica.

Em Coimbra, Anchieta tinha realizado estudos de retórica e de suas diferentes aplicações, especialmente na poesia, na oratória e no teatro. Ao observar que os índios eram muito interessados em representações teatrais e cenografias, cria peças teatrais onde adapta os preceitos da retórica do teatro humanista português (especialmente de Gil Vicente) e espanhóis (Tirso de Molina e Calderón de La Barca) aos gostos e às formas rituais próprias da cultura dos nativos, como, por exemplo, o cerimonial indígena de recebimento dos hóspedes. A construção retórica básica do teatro vicentino, a luta entre o bem e o mal, é retomada e relida à luz da cultura indígena, sendo introduzidas personagens deste contexto, mas conservando o mesmo objetivo moralizador da batalha e da vitória final do bem.

Os autos teatrais de Anchieta reapresentam o esquema do teatro de Gil Vicente onde a luta entre o bem e o mal se trava entre anjos e demônios, com batalha e vitória final de Cristo, através da intercessão de Nossa Senhora e dos Santos. O espetáculo apresentava uma linguagem fácil, didática e tinha fortes apelos sensoriais. Inspirado nos Exercícios Espirituais, este teatro formava imagens, sugeridas através das representações. E assim uma testemunha ocular dessas encenações (o padre Fernão Cardim), na obra Tratado da terra e gente do Brasil, relata: "Os curumins [crianças índias], com muitos molhos de frechas levantadas para cima, faziam seu motim de guerra e davam sua grita, e pintados de várias cores, nuzinhos, vinham com as mãos levantadas receber a benção do padre, dizendo em português 'louvado seja Jesus Cristo'. Outros saíram com uma dança d’escudos à portuguesa, fazendo muitos trocados e dançando ao som da viola, pandeiro e tamborim e flauta, e juntamente representavam um breve diálogo, cantando algumas cantigas pastoris".

Os autos escritos por Anchieta valeram-se do plurilinguismo. Era comum o uso das três línguas num mesmo auto. De 1564 até a sua morte, Anchieta escreveu aproximadamente 20 autos, o que corresponde à quase totalidade das peças jesuíticas do período, e escrevendo para os nativos ou para os colonos que já entendiam a língua geral da costa, o missionário adotava quase sempre o idioma tupi.

O INTELECTUAL PRESENTE NA VIDA DO POVO
Segundo Alfredo Bosi, Anchieta teria sido “o nosso primeiro intelectual militante”. Mas no caso do Anchieta, a qualificação de “intelectual orgânico” dada por Bosi, não deve ser entendida no sentido gramsciano e pós-iluminista. Anchieta é sim um intelectual orgânico, mas no sentido de que concebe a si mesmo e sua obra como pertencendo e a serviço de um universo formado por vários corpos religiosos, socioculturais e políticos: a Companhia de Jesus e a Igreja Católica; o corpo familiar e social no qual se formou; o corpo sociocultural constituído a partir de sua relação e convivência diária com os índios, no qual se concebe como formador e educador.

Encarar Anchieta nesta perspectiva permite-nos entender de maneira unitária sua obra incluindo-se o pluralismo linguístico (o uso conjunto de tupi, português, espanhol e latim), a composição de imagens, alegorias, ritmos musicais e gestos de seu teatro e poemas. Seriam inexplicáveis aspectos inteiros da obra anchietana se fossem reduzidos apenas ao objetivo catequético e doutrinário: o que dizer, por exemplo, do poema em latim de 5785 estrofes por ele escrito e dedicado à Virgem Maria, quando cativo entre os Tamoios? Sem dúvida, não seria destinado à leitura dos índios nem dos colonos. Na verdade, amava tanto escrever versos (e inclusive, utilizava-se deste seu talento para compor orações para o povo rezar) de modo que mesmo no meio das condições mais adversas e de doenças, nunca deixou de poetar.

O interesse pela língua tupi (que comparava ao grego por sua complexidade) e a criação da gramática escrita em tupi não poderiam ser explicados apenas como fruto do objetivo cristianizador da cultura local, prescindindo da curiosidade viva e atenta para conhecer o mundo do outro que Anchieta expressa constantemente em suas cartas. Inclusive, no âmbito do trabalho catequético que se expressa em seu catecismo em língua tupi, o projeto de transpor para a fala do índio conceitos do catolicismo demandava o esforço de penetrar no imaginário do outro, e Anchieta foi criando um léxico original traduzindo na língua tupi termos como igreja (tupãoka casa de Tupã), demônio (anhangá, espírito errante); anjo (karaibebê, profeta voador), etc.

O amor pelo teatro que o movia e o fez compor um conjunto de peças é inexplicável sem lembrarmos os tempos de sua formação universitária em Coimbra, seu contato com a obra teatral dos grandes autores de sua época e sem considerarmos que seu olhar agudo o fez perceber a disposição à expressão teatral inerente à cultura indígena. De modo análogo, as lições aprendidas em seu estudo da retórica faria com que seus sermões fossem admirados pelos ouvintes. Dentre os depoimentos fornecidos para o processo de canonização do jesuíta, vários se referem às suas atividades de pregação, destinadas “assim aos brancos como aos naturais da terra”. A pregação era acompanhada por um intenso envolvimento dos ouvintes, “fazendo cantigas ao divino, que os meninos e as moças cantavam pelas ruas”. Adaptava canções portuguesas e cantigas profanas mudando-lhes as letras para dar-lhe um sentido sagrado, de modo que o povo aprendia e repetia.

Através destes recursos, Anchieta reafirmava o valor da pessoa humana, que se atinge por meio de um juízo iluminado pela graça de Deus, como critério para avaliar e reprovar situações sociais observadas no contexto do Brasil colonial. Isto o levara, por exemplo, a condenar a negligência dos senhores, que tão pouco caso fazem dos seus escravos. “Para que saibamos estimar as coisas segundo seu valor”, afirma, devemos olhar o escravo não como um ser “boçal e bestial, e que me custou meu dinheiro”, e sim “vendo nele representada a imagem de Cristo Nosso Senhor, que se fez escravo para salvar este escravo e me serviu como escravo trinta e três anos, por me salvar a mim [homem escravizado pelo mal]”.

O DESAFIO DE ANCHIETA
A posição cultural e a abertura humana e mental de José de Anchieta nos desafiam! O fato de que no Brasil, Anchieta, juntamente a uma extraordinária obra intelectual e poética-teatral, tenha aprendido também a fabricar alpargatas ou a sangrar doentes, é evidentemente fruto de uma atenção à realidade e às necessidades que a realidade colocava. Ele que nunca deixou de ser um intelectual e um poeta, mesmo que vivesse na pobre cabana de Piratininga, ou estivesse preso e ameaçado de morte por índios hostis – compondo no cativeiro um dos seus mais belos poemas –, nos mostra que para produzir um trabalho intelectual criativo não são essenciais condições de vida diferenciadas.

Este texto são notas da palestra proferida pela professora Marina Massimi (USP Ribeirão Preto) no evento “Cultura e ciência: a expansão da razão”, no centro Universitário da FEI, em São Paulo, em agosto de 2007.

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