Pe. Ulysses

Padre Ulysses. Discreto, firme, zeloso

A figura do sacerdote de Brasília, morto em agosto, se revela na descrição de amigos e de fatos cotidianos de um construtor de templos e da Igreja de Cristo
Liziane Bitencourt Rodrigues

Os adjetivos escolhidos pelo bispo Dom José Aparecido para iniciar a homilia nas exéquias do padre Ulysses Reis de Carvalho descrevem aspectos marcantes da personalidade deste sacerdote de Brasília, membro da Fraternidade de Comunhão e Libertação, falecido no dia 17 de agosto, aos 60 anos de idade. Mas não apenas estes, como evidenciou a fala comovida do bispo e a descrição de amigos próximos sobre o homem que, já formado em medicina, escolheu abraçar o sacerdócio.

«Um dia telefonei ao padre Ulysses e perguntei: “atrapalho?”. Ele respondeu: “atrapalha!”. Parece com ele, não é? Depois de meia hora, me retornou e disse: “Eu estava dirigindo e como dirijo mal, preferi falar com o senhor depois”. Sincero! Não dirigia tão mal assim», brincou Dom José Aparecido, atual administrador pastoral da arquidiocese de Brasília. Forçado a uma longa pausa na fala, pela voz embargada, o bispo acrescentou ainda mais uma característica do amigo que conheceu nas aulas de história do seminário: leal.

«Com a mesma sinceridade que me disse “incomoda”, antes de entrar para a UTI, me mandou um recado: “Caro Dom José, estou sendo levado para a UTI. Lá não posso usar telefone. Até logo!”. Difícil falar», reconheceu o bispo, lembrando da última conversa com o amigo poucos dias antes de sua morte. Foram poucos dias de internação hospitalar, que revelaram a presença do linfoma fatal e silencioso.



Amor pela Igreja
«Perguntei ao padre Ulysses se ele podia oferecer os sofrimentos dele pelo discernimento que Deus está fazendo de um novo arcebispo para Brasília. Ele disse “Sim, mas primeiro vou fazer pelos 13 padres” (que seriam ordenados nos dias seguintes à sua internação). Neste pastor discreto, vi nestes dias em que mantive contato por meio da família dele, uma única preocupação: o futuro da arquidiocese, do clero de Brasília pelo qual ele ofereceu a sua vida. Ele me disse: ofereço meus sofrimentos pelo clero de Brasília, especialmente pelos mais novos. Ele é zeloso. E não digo no passado. É! Do seu zelo pastoral, desta paróquia, nasceram muitas vocações sacerdotais. Em 25 anos, seis padres que saíram daqui (da paróquia na região administrativa Samambaia). O ministério sacerdotal do padre Ulysses, se não valesse por outra coisa, por tanta vida que ele deu no batismo, por tanto perdão que concedeu no sacramento da reconciliação, por tanto culto a Deus que ele deu não só na beleza dos tempos, mas nas liturgias bem cuidadas, seis sacerdotes saíram do seu coração de pastor. Alguns diziam que ele era temperamental, meio duro. Eu nunca vi este padre Ulysses. Vi sim um homem firme, corajoso, generoso e amigo.»

Pronto na obediência
O hábito da leitura unia o padre e o bispo. «Quando éramos jovens costumávamos trocar livros de vez em quando. Quando eu vinha celebrar aqui na paróquia, com a intenção de voltar logo e cuidar da minha mãe em casa, nunca conseguia sair daqui sem uma longa conversa amena, afável, amiga e sincera com ele. Por isso, desculpem se me atrevo a me comparar com Jesus que chorou Lázaro, chorou um amigo. E que em vez de uma homilia mais curada, preferi dar o testemunho de um pastor que vocês conhecem. Uma única vez quando tive que pedir uma coisa, exigindo uma obediência dele, prontamente mudou o que estava fazendo e disse, jocosamente, “manda quem pode e obedece quem tem juízo”. Foi pronto na obediência e preservou um bom humor e a amizade do mesmo jeito. Uma semana depois trocávamos livros do mesmo jeito. Tinha noção certa da condição de pastor, da sua autoridade, sabia obedecer e dar generosamente seu tempo, a sua vida, suas energias até o fim. Conheço o coração do padre Ulysses. Este homem edificou vocações, edificou igrejas, mas edificou comunidades que são pedras vivas unidas pela fé católica. Não por compromissos ideológicos ou outra coisa, mas por um desejo imenso de louvar a Deus, prestar um culto agradável a Deus. O zelo que fazia com que fosse firme e atento firme. E posso dizer do papel de confessor que exerceu na região. Era conhecido como padre que sempre atendia confissões. Uma penitente a quem quero muito bem, minha mãe, dizia que o padre Ulysses era um dos melhores confessores que já tive. E minha mãe é exigente. Ela nunca se confessou comigo, mas com o padre Ulysses, sim. Ela me contou que ele lhe perguntou: a senhora é de uma dessas fofoqueiras que vivem atrás da barra dos padres? Ela disse “não, detesto”. E ele: “Ainda bem, ainda bem”! Tinha aquele bom humor sagaz que ainda vai conservar nos céus que me faz lembrar um grande santo da história da igreja, São Thomás Morus, que compôs uma oração para pedir bom humor a Deus. Estava preso na torre de Londres esperando a sua execução. Dizia: dai-me uma boa digestão e, se for possível, alguma coisa para digerir.»

Um estudioso e construtor
«Lembro-me do que o bispo da época, Dom Alberto Taveira, disse na missa de apresentação do padre Ulysses, quando ele chegou, em 1994: tratava-se de um padre que gostava muito de estudar. E nos impressionava também porque era médico, falava cinco idiomas, intelectual, inteligentíssimo, mas simples e requintado ao mesmo tempo, que já usava carro popular muito antes do Papa Francisco dar esta recomendação aos sacerdotes», conta Maria Regina, da comunidade de Brasília. Perguntado por que deixou a medicina pelo sacerdócio, dizia: «Como médico, não havia mais o que fazer quando a pessoa morria. Como padre, poderia levar almas para vida eterna».

Ao assumir a paróquia Nossa Senhora Aparecida, aos 35 anos de idade, encontrou apenas um pequeno barracão, onde eram celebradas as missas e uma salinha de catequese. Logo no início começou, nas missas de todos os finais de semana, a conscientização dos paroquianos sobre a importância de se pagar o dízimo. O valor aumentou consideravelmente e ele então manifestou o desejo de construir a igreja e o centro catequético. «Tinha uma capacidade admirável para administrar o dízimo, as obras, além de celebrar missas de domingo a domingo. Chegou a celebrar em um único final de semana 14 missas», conta Maria Regina.
Também dividia o tempo na coordenação das diversas pastorais da paróquia e se dedicava, de terça a sábado, a atender confissões, algo pelo que era bastante conhecido. «Dizia que esta era a parte mais difícil para ele, como sacerdote, e por isso fazia questão de atender, como uma espécie de mortificação, mas com o mesmo amor e zelo que eram notórios na forma como preparava a liturgia e celebrava a eucaristia», diz ela.

Padre Ulysses não parou na construção da paróquia: construiu mais duas grandes igrejas, com centro catequético e apartamentos para os futuros sacerdotes, além de outras quatro capelas, com salas. Usava às vezes do seu salário de sacerdote para contribuir nas obras das igrejas. No nome dados aos templos ficou evidente a sua devoção a Nossa Senhora, traço marcante do seu sacerdócio: Nossa Senhora Aparecida, Nossa Senhora de Fátima, Nossa Senhora das Dores, Nossa Senhora da Conceição, Nossa Senhora das Graças, Nossa Senhora do Rosário e Nossa Senhora da Abadia (em homenagem à sua querida mãe que se chama Abadia). A maior parte dos terrenos dessas igrejas e capelas foi comprada em licitação do governo do Distrito Federal, sob a administração do padre Ulysses e com a contribuição dos dizimistas, rifas, festas juninas e bazares. Esse padre construiu apenas igrejas/edificações, não de forma alguma.

Homilias catequéticas
Muito conhecido e admirado pelas suas homilias, bastante catequéticas e cheias de dados históricos, padre Ulysses revelava grande estudo da Sagrada Escritura, de teologia, filosofia e a relação com a realidade, tendo Cristo como exemplo e companhia para enfrentar a vida. Foi professor do Instituto Teológico São Boa ventura e atualmente era professor no Seminário Maior de Brasília. Fiel à Escola de Comunidade semanalmente e ao retiro anual dos sacerdotes de Comunhão e Libertação, vivia a própria humanidade de forma escancarada. «Não escondia seus defeitos, mas tinha uma intimidade com Cristo que se via claramente nas suas atitudes e palavras, uma fidelidade incontestável a Deus e à igreja. Disse-nos, certa vez, numa Escola de Comunidade: “Aprendi uma coisa nesta vida, Cristo não veio a este mundo para resolver nossos problemas, curar doenças ou fazer milagres, mas para caminhar conosco lado a lado”», lembra Maria Regina.

Da sua paróquia surgiram seis sacerdotes já ordenados e há outros em formação, diversas religiosas e inúmeros leigos que formaram verdadeiras famílias cristãs. «Ele nos ensinou a apreciar as coisas boas e belas. Conhecia e praticava tudo o que a liturgia exige e o que ensinava vivia com sua própria vida», destaca a amiga.

Amor pelos sacramentos
Um fato particular no relacionamento com o padre Ulysses mostrou à Cyntia, também de Brasília, o quanto ele levava a sério os sacramentos. Ela pediu a unção dos enfermos para a mãe, que estava internada. Ele disse que, em função de outros compromissos, poderia ir somente à tarde. Mas em seguida ligou novamente para dizer que havia desmarcado o compromisso e que estava indo para o hospital imediatamente. «Chegou ao hospital, deu a unção dos enfermos, absolvição dos pecados e pediu a Nossa Senhora a sua intercessão por ela. Minutos depois minha mãe faleceu. Quando recebemos a notícia, me dei conta do horário que foi logo após de ter recebido a visita do Padre Ulysses. A médica ainda ressaltou que geralmente antes de falecer as pessoas esperam a visita de alguém ou alguma coisa. Não tive dúvida alguma que minha mãe esperava partir em estado de graça e esse desejo foi respondido através do padre Ulysses, que sempre foi tão sério com relação aos sacramentos.»

Dizia o que era preciso
«Foi especialmente no velório do padre Ulysses que compreendi que a nossa carne quando é totalmente investida pelo amor de Cristo se torna possibilidade de encontro de outros homens com Ele, essa é a nossa salvação», diz Patrícia, da comunidade de Brasília. «A morte repentina dele coincidiu com o trabalho que estávamos fazendo na Escola de Comunidade sobre o capítulo 3 do livro O brilho dos olhos, que fala “A carne é o eixo da salvação”. Eu me perguntava o que isso significava e fui surpreendida por dias difíceis por causa da morte de pessoas próximas à minha família, que de alguma forma acendia ainda mais essa necessidade de entender como uma carne tão frágil como a nossa pode ser um canal, um caminho para salvação. No velório do padre Ulysses fui agraciada por dois testemunhos: primeiro, a homilia comovida do Dom José Aparecido, que descrevia concretamente a pessoa do padre Ulysses como homem apaixonado por Jesus e sua vida dedicada à Igreja, segundo, o de todas as pessoas que faziam filas imensas durante o velório, muitos paroquianos e amigos que desejavam se despedir. Eu me perguntava: quem era padre Ulysses?», conta ela. Os dois se conheceram quando ela era universitária e começou a participar de CL e ele foi convidado para apresentar um dos livros do Dom Giussani na Universidade Católica. «Era um homem de poucas palavras, mas sabia dizer o que era preciso de forma clara e objetiva. Ele me ajudou muitas vezes em questões relacionadas à creche que trabalho (Nossa Senhora Mãe dos Homens, que surgiu na Samambaia a partir da experiência de Comunhão e Libertação), especialmente quando eu precisava tomar decisões difíceis. Eu sempre tive muita dificuldade em me confessar, com ele descobri o que era um diálogo com Jesus no confessionário. Padre Ulysses foi um amigo, continua sendo, que me ensinou a amar e servir a Jesus sem negar a minha humanidade, quem eu sou e como sou. E me ensinou com o seu testemunho: uma diversidade humana!».

Um grande amigo
«Nos momentos mais difíceis da minha vida, dos processos [pela publicação da história de um aluno que havia sido assassinado] e da doença dos meus dos meus pais, ele sempre me acompanhou. Visitava meus pais na UTI, confessava minha mãe, estava comigo e me dava apoio. No julgamento do processo estava presente comigo», conta Sêmea, que também vivia em Brasília quando o padre conheceu Comunhão e Libertação, em 1997. Começaram juntos um pequeno grupo de Escola de Comunidade na Samambaia, onde Sêmea e Glória eram professoras. «A Escola de Comunidade era uma coisa simples. Como os almoços na casa dele quando padre Virgílio Resi ia de Belo Horizonte a Brasília e o padre Ulysses nos convidava. São pequenos fatos de uma amizade muito profunda. Depois que mudei para Belo Horizonte, sempre que ia a Brasília ia assistir à missa dele e passava depois na sacristia. Mesmo se ele estivesse irritado com algo que não saiu bem na celebração, me abraçava e me cumprimentava com um sorriso muito largo, querendo saber de tudo que eu estava fazendo, das minhas viagens. Nas missas de Natal sempre assistia com ele e no final, já ficava esperando para saber da minha vida. Um amigo que pedi na terra e ganhei no céu.»