O “acontecer da pessoa”
Em Ribeirão Preto, um trabalho sobre saúde mental que traz uma originalidade que é cada vez mais reconhecida. Para Dr. Sergio Ishara, o coordenador do projeto, é "a resposta a uma vocação" (da Passos de maio/2021)Neste artigo, um grupo de Universitários entrevistam Sergio Ishara, médico psiquiatra, coordenador clínico do Hospital Dia da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo, cofundador do Grupo Comunitário de Saúde Mental.
Alanis: Sabemos que o senhor trabalha com saúde mental, mas parece algo diferente do que a gente costuma associar com esse termo. O que o senhor faz no seu trabalho?
Acredito que esse «algo diferente» que você mencionou se justifica tendo em vista a construção de um programa com características educativas e de promoção de saúde mental que a gente vem desenvolvendo há mais de vinte anos e que se chama Grupo Comunitário de Saúde Mental. Esse programa se constitui como um espaço comunitário de compartilhamento de experiências de vida no qual se cultiva uma atitude de atenção ao processo cotidiano de formação da pessoa humana. Dito de outra forma, o trabalho busca cultivar «pessoas vivas», ou seja, abertas para descobrir as oportunidades de experiências a partir das vivências comuns do dia-a-dia. Dessa maneira, os participantes do grupo nos ajudam a descobrir a realidade e a pessoa humana. Então, o programa se diferencia de abordagens tradicionais em saúde mental, buscando integrar aspectos de natureza ontológica, educativa e cultural ao campo do cuidado. Quando estamos nos grupos, podemos perceber esta originalidade, por exemplo, no fato de não haverem previamente definidas pessoas com um suposto saber que detêm a tarefa do cuidado. A autoridade do cuidador emerge da riqueza da experiência vivida e qualquer participante pode ser protagonista da ajuda aos outros. Aqui se encontra outra faceta de diferenciação, uma vez que não é comum pensar que podemos ajudar os outros a partir da riqueza do que vivemos.
Alanis: Mas, como isso acontece?
Do ponto de vista prático, organizamos grupos abertos à comunidade no qual as pessoas compartilham as suas experiências de vida, algo que pode parecer simples, mas não é, porque não se trata, apenas, de contar algo que ocorreu. De uma forma provocativa, eu diria que é bastante raro que a gente consiga estar vivo diante dos acontecimentos cotidianos. Compreendemos esse «estar vivo» como uma capacidade de abertura e de encontro, algo que transforma a nós mesmos e a realidade. Nos grupos, isso acontece em três etapas: um momento inicial, denominado sarau, no qual os participantes são convidados a partilhar encontros que ocorreram na relação com a cultura, na forma de textos, músicas, filmes, vídeos e imagens; em uma segunda parte as pessoas compartilham experiências cotidianas; e na última etapa relatam os encontros que aconteceram no próprio grupo.
Em todas essas etapas o eixo comum é o «acontecer da pessoa», ou seja, não se trata de contar fatos, mas valorizar quando a pessoa se percebeu viva diante dos fatos. Como escreveu Clarice Lispector: «Gosto de ver as pessoas sendo». De forma complementar, buscamos reconhecer o que poderíamos chamar de «a realidade sendo», ou seja, cultivamos uma abertura para descobrir a realidade.
Em resumo, organizamos os grupos para que os participantes possam oferecer algo de si mesmos, aquilo que brotou de uma relação fecunda com a realidade. Assim, o grupo configura uma perspectiva original no campo da saúde mental, centrada em acompanhar a formação da pessoa, a partir dos encontros que tecem a nossa humanidade e alicerçam a nossa saúde mental.
Anderson: Quando a gente ouve falar de um trabalho diferente, a gente quer primeiro entender como surgiu. Eu fiquei muito impactado de encontrar alguém que faz algo diferente. Mas existe um método, né? Todo mundo segue um determinado método. O que faz alguém, de repente, mudar a forma de fazer? Ou mudar o seu método, mudar o caminho. Eu queria entender como nasceu esse seu trabalho, esse seu desejo, seu amor pela psiquiatria, e depois como ele se desenvolve, como muda o interesse por esse aprendizado com a realidade.
Eu acho que a minha vocação pode ter nascido do encontro com o sofrimento e com o entusiasmo pela possibilidade de cuidado. Digo vocação porque descreve um envolvimento com o trabalho que emerge e se sustenta a partir de uma relação com a realidade. Tem um autor chamado Marías que descreve a vocação não como o que escolhemos, mas algo que a gente se sente escolhido para fazer. Quero dizer que não é somente uma escolha na época do vestibular. Lá começa um caminho, mas tanto na origem, quanto depois, esta escolha se sustenta e se desenvolve na relação com a realidade, quer dizer, no envolvimento com as coisas que acontecem.
Então, o trabalho precisa nascer e renascer, continuamente. Trata-se de ir colhendo os sinais e as ajudas que vão surgindo. Precisamos ser acompanhados o tempo todo e não somente por aqueles que nos apoiam, mas por aqueles que nos questionam e, até mesmo, lutam contra nós, porque eles nos provocam para ir ao fundo das razões do que fazemos. Aprendi com Giussani a procurar as razões da nossa esperança e isto foi muito importante naqueles muitos momentos em que as coisas ficavam difíceis, quando parecia ter mais força contra do que a favor. Estas circunstâncias se tornaram ocasião para aprofundar os motivos pelos quais realizar o trabalho.
Ao longo da vida, o interesse em aprender com a realidade foi despertado pelo encontro com vários mestres e certamente Giussani foi fundamental. Acredito que ele era gerado a partir da redescoberta cotidiana da potência do encontro, vivia dos encontros que fazia no dia-a-dia, até o ponto de intuir que essa era uma possibilidade diante de tudo e de todos.
Daí pode nascer uma humildade, uma espera do que sustenta a vida. Por isso, afirmou que o verdadeiro protagonista da história é o mendicante. Em quem encontramos tamanha paixão pela fenda humana? O mendicante carrega uma espera, guarda uma ferida. Trata-se de uma extraordinária consideração pelas aspirações originais da natureza humana como instrumento que permite a constituição de uma pessoa. Uma posição de humildade, que se exalta quando se encontra o que faz arder o coração. Lembro da música do Chico César «Quando não tinha nada eu quis / Quando tudo era ausência esperei […] Quando vi você me apaixonei».
Acredito que o envolvimento com o trabalho se sustenta quando deixamos arder em nós o que nos falta e abraçamos o que descobrimos como resposta.
Humberto: Queria entender um pouco como que esse impacto com a realidade intercepta no seu trabalho, como ele influencia diretamente?
Cada vez mais eu percebo a possibilidade interagir com tudo o que acontece. Lembro que os Grupos Comunitários realizados no hospital começavam às oito e meia da manhã e algumas pessoas, em geral os pacientes, traziam experiências que tinham acontecido naquela manhã. O dia mal tinha começado e elas já tinham o que compartilhar. Recordo ainda que em alguns anos, descobri a chegada da primavera porque os participantes do grupo traziam experiências com os ipês floridos que, depois conseguia reparar na volta para casa. Com o tempo fui aprendendo esta atitude e fico contente porque às vezes chego ao hospital às 7h tendo vivido algumas experiências, um dia no café da manhã, outro dia ao arrumar a cama, às vezes no caminho até o trabalho. Estes encontros foram possibilitando algo que não imaginava.
Recentemente acompanhei a doença e a morte da cachorrinha de casa. Teve um dia marcante porque me surpreendeu o ímpeto dela para viver, mesmo estando muito adoecida. Foi impressionante porque ela não andava mais, as pernas estavam fracas, mas ela queria caminhar. Quando vi esse ímpeto dela para viver, com a pouca energia que tinha, compreendi o que quer dizer «lição de vida». Acho que significa que se descubro um pouquinho de ar, eu respiro, entendi isto como uma lição de vida.
Esses exemplos ilustram como a metodologia desenvolvida no Grupo Comunitário de Saúde Mental abraçou a perspectiva de vivermos provocados pela pergunta sobre as nossas experiências cotidianas e acompanhados pela humanidade das pessoas que compartilham as suas experiências. Este horizonte definiu o programa como uma morada para a formação humana, construída na relação com a realidade e com a comunidade.
Neste percurso, descobrimos a riqueza da vida e compreendemos o horizonte da pessoa como obra de arte. Há alguns dias, redescobri uma música do Cláudio Chieffo que diz: «Se um dia meu amigo eu esquecesse as palavras, esquecesse o lugar e a hora, esquecesse se era dia ou se era noite, eu não esqueceria jamais, eu não esqueceria nunca que coisa diziam os teus olhos». Percebi estas palavras como uma referência para julgar o dia. Gosto de brincar com esta ideia imaginando alguém perguntando: «Você vai dormir?» e uma possível resposta: «Não posso, ainda não descobri hoje um olhar que não esqueceria jamais».
Acredito que nossa sociedade perdeu esta perspectiva e deixou de ser um escândalo ver pessoas assassinadas todos os dias ou milhares de mortes na pandemia. São sintomas de um tempo no qual desvaneceu o valor da vida humana. Ter consciência disso, justifica e alimenta a paixão pelo trabalho que realizamos, na medida em que busca resgatar a dignidade da vida. Assim, quando uma pessoa compartilha uma experiência, descobrimos que estar diante de uma pessoa viva não tem preço.
Então, quando a gente pergunta: «Alguém tem alguma experiência de vida para contar hoje?», isto pode parecer algo simples ou banal. Mas, o que estamos perguntando é se alguém encontrou algo que deseja não esquecer jamais, ou seja, queremos acompanhar a formação da pessoa humana, como fruto da criatividade diante do cotidiano.
Não é uma pergunta nossa, é uma aspiração humana. É isso que o Giussani me ensinou, reconhecer a estrutura que gera o humano e a possibilidade de entusiasmo diante da sua realização. Por isso, delineamos o método do Grupo Comunitário como um processo para aprender a reconhecer e cultivar o acontecer da realidade e do humano.
Veronica: O senhor contou também um pouco sobre a sua rotina. Vejo que olha para ela também como algo sempre novo, mesmo que acabe fazendo as mesmas coisas todos os dias. Nesses dias eu estava olhando para uma pessoa do meu trabalho, que está lá há anos na mesma função. Mas é como se ela olhasse para as coisas que acontecem como algo novo. Ela é sempre muito viva. Por outro lado, também já ouvir colegas falarem que estavam cansados da rotina. Mas, como é para o senhor? Ainda olha para o que faz com frescor, como algo novo? Como, se o senhor faz todos os dias o mesmo trabalho?
Parece bom que a rotina nos incomode enquanto uma repetição mecânica. Normalmente quando a gente diz que virou rotina, quer dizer que as coisas perderam o frescor do encontro com o que tem valor e, quando isso acontece, precisamos acender um sinal de alerta.
Lembro de um amigo dizendo que seu trabalho era mecânico e não era possível uma experiência de vida naquele ambiente. Acredito que precisamos redescobrir sempre o sentido do trabalho, pois alguns procedimentos podem ser repetitivos, mas a nossa liberdade de envolvimento com o trabalho não pode ser mecânica. Encontramos novidade na adesão renovada ao que tem valor.
A rotina pode ser o lugar de experimentar e afirmar o que tem valor, ou seja, expressar o apego ao que tem tanto valor que queremos abraçar todo dia. Neste sentido, podemos imaginar uma pessoa dizer com admiração: «esta semana tomei café, escovei os dentes, trabalhei, cuidei dos filhos, etc.», como alguém apegado ao que reconhece com valor. A gente acredita que é normal perder o entusiasmo com o tempo, mas é o contrário, basta lembrar de tantos artistas que, com o tempo, foram crescendo em sua sensibilidade e desenvolvendo sua capacidade de encontro com a realidade.
Como participar do Grupo Comunitário de Saúde Mental?
Atualmente os encontros funcionam na modalidade on-line, de forma gratuita e aberta a qualquer pessoa interessada. Os links de acesso aos grupos estão disponíveis na agenda do site: www.grupocomunitario.com.br.