Natal. Assim, Deus torna-se visível
«Natal, um fato real que faz frente ao nosso afastamento da vida». A contribuição sobre o Natal de Julián Carrón, publicado no "Corriere della Sera" de 23 de dezembroCaro Diretor,
lendo os jornais destes dias, foi inevitável para mim deparar com muitos indícios da situação humana em que nos encontramos. Num artigo publicado no Corriere della Sera, o amigo Mauro Magatti chamava a atenção para aquilo que ele definiu como «a síndrome do “afastamento”». Um número cada vez maior de jovens tem uma grande dificuldade em estar na realidade e «decide largar um bom trabalho porque já não consegue encontrar motivação para continuar» (22 de dezembro de 2021). Mas a fuga começa antes, na escola. Ipsos, com Save the Children, estima que em 2020 tenham abandonado a escola mais 30 mil estudantes em relação aos 120 mil que já a abandonam todos os anos. «Em forte crescimento os adolescentes “afastados” em casa» era o título de um artigo de Elisabetta Andreis, também no Corriere (12 de dezembro de 2021). Este fenômeno não diz respeito apenas aos jovens que frequentam as escolas ou entram no mercado de trabalho. Nos Estados Unidos, «entre julho e agosto passados, mais de 8 milhões de trabalhadores largaram o posto de trabalho, 28% dos quais no escuro, sem alternativas. […] Os grandes jornais usam títulos de impacto, como Great Resignation (A grande demissão)» (ilfattoquotidiano.it, 22 de outubro de 2021).
Vem ganhando espaço a impressão de uma crescente apatia diante da vida. A fuga da realidade surge a muitos, portanto, como a única possibilidade de ter paz. No entanto, nem sequer neste «afastamento do mundo» as pessoas conseguem encontrar a paz. Por mais diferentes que sejam as situações das pessoas, em cada uma delas vem à tona, em toda a sua imponência, a irredutibilidade do eu, de sua exigência de sentido. E o homem continua a procurar, às apalpadelas, em toda parte, até em lugares que, em plena “modernidade”, na época dominada pela razão científica, não esperaríamos. Num artigo publicado no dia 29 de novembro na revista on-line Persuasion, Mark Alan Smith, professor na Universidade de Washington, assinala que o recurso à astrologia, ao karma, aos tarôs e ao «mercado dos serviços místicos» (para um volume de negócios de 2,1 bilhões de dólares nos EUA) se difunde entre as pessoas mais diferentes, e nota que não há grande diferença entre ateus, cristãos, muçulmanos ou judeus.
São sintomas de uma desorientação que se torna cada vez mais invasiva e da dificuldade de encontrar respostas pertinentes, adequadas. Em relação ao conhecimento da verdade, Santo Tomás afirmava que «a verdade sobre Deus», ou seja, sobre o significado último da vida, «exarada pela razão, chegaria aos homens por meio de poucos, depois de longo tempo e de mistura com muitos erros» (Suma Teológica, I, q. 1, art. 1). Parece-me ser uma boa síntese em relação às muitas tentativas humanas de alcançar alguma certeza sobre o significado que os nossos dias, as dificuldades cotidianas e a dureza da vida demandam.
É nesta situação que chega o Natal, e como todos anos, entra na nossa história de modo suave, põe-se diante de nós sem clamor, desarmado, como no início, quando passou despercebido para a maioria das pessoas, a não ser para alguns pastores.
O Natal acontece de novo hoje, como então, desafiando a nossa forma de enfrentar a vida e os seus desafios. Como? Deus não se retira para o mundo “espiritual”, mas entra na história como uma criança, como uma presença carnal, real.
A decisão de entrar na história como homem expõe Deus às objeções que bem conhecemos: a primeira de todas, o risco de ser reduzido. «Não é este o filho do carpinteiro? Sua mãe não se chama Maria?» (Mt 13,55), perguntavam-se os concidadãos de Jesus. Está sempre à espreita a possibilidade de reduzir, de não captar a excecionalidade que se encerra numa humanidade como a de todos.
Mas nada pode impedir, hoje como há dois mil anos, que precisamente através do humano chegue até nós algo irredutível, que desafia nossa medida, nosso modo de pensar. «Jamais vimos coisa igual!» (Mc 2,12), diziam, espantados, diante dos gestos de Jesus. O que é que viram aqueles que O encontraram para fazerem uma afirmação destas?
Ele veio e continua a vir – aqui, agora – para procurar o homem perdido de hoje, que sofre com a «síndrome do afastamento» da vida. Ele vem nas suas testemunhas, por uma atração irresistível, pelo fascínio de uma humanidade excepcional, que desperta o desejo. Como repete muitas vezes o Papa Francisco: «A Igreja não cresce por proselitismo, mas “por atração”» (Evangelii gaudium, 14). Este é o modo como se comunica o cristianismo: uma atração.
Claro, o método usado por Deus para vir ao encontro do homem real de cada época não pode deixar de deparar com os limites dos homens que trazem o anúncio da Sua presença no mundo. Mas nenhum limite pode parar a iniciativa do Mistério. É o que nos recorda Joseph Ratzinger com palavras libertadoras: «Como a realidade de um homem se revela na história da sua vida e nas relações que estabelece, assim Deus se torna visível numa história, em homens, através dos quais a sua natureza se torna manifesta, a tal ponto que Ele pode ser “denominado” em relação a eles, neles pode ser reconhecido: o Deus de Abraão, de Isaac e de Jacó. Na relação com pessoas humanas, nos rostos de pessoas humanas, Ele manifestou-se e mostrou o Seu rosto». Por isso, observa ainda, «não podemos, ignorando estes rostos, querer ter apenas a Deus, por assim dizer, em sua forma pura: isso seria um Deus pensado por nós em vez do real, seria um purismo arrogante, que considera seus pensamentos mais importantes do que as ações de Deus» (Maria. Chiesa nascente, Cinisello Balsamo: San Paolo, 2005, pp. 52˗53).
É esta a provocação que o Natal lança todo ano a cada um de nós: um fato humano, real, desafia os nossos pensamentos, a nossa confusão, a nossa fuga para mundos misteriosos, o nosso afastamento da vida, e “toma-nos” com a atração de uma presença humana excecional. «Cristo atrai-me todo a si, tão belo é», disse o grande Jacopone de Todi.
É isto o Natal: Cristo, Deus feito homem, que vem ao nosso encontro por meio de pessoas que são presenças tão afetivamente atraentes, que nos libertam das grades em que nos fechamos para suportar os choques da vida. Como me testemunhou recentemente um amigo, a quem alguém disse, devido à humanidade diferente que vi nele: «Olha, hoje para mim é Natal!»
*professor de Teologia na Universidade Católica do Sagrado Coração de Milão