Onde amizades mudam vidas
A animação Luca é uma produção da Pixar que, através de uma viagem fantástica, sugere um olhar para a própria vida e nossas escolhasComo de costume, preciso informar que esta resenha vem com diversos spoilers. Então, se for de sua vontade assistir este filme com a expectativa de não saber nada sobre ele, recomendo que pare, assista, e volte para cá depois.
Lançada em junho de 2021, a animação Luca teve seu lançamento para os cinemas cancelado, sendo exibido unicamente, de forma lamentável e justificavél, na plataforma de stream Disney+. Justificavel por estarmos em meio a uma crise sanitária, mas lamentável porque foi um filme realmente planejado para ser visto e admirado em uma tela grande em plena sala de cinema.
Escrita e dirigida por Enrico Casarosa, a nova produção da Pixar conta as aventuras de Luca, um pequeno monstro marinho que passa os dias trabalhando como pastor de peixes e que, apesar das recomendações da família sobre os perigos do mundo da superfície, vai explorar esse novo lugar graças ao incentivo e apoio de seu amigo Alberto, outro pequeno monstro marinho que vive numa ilha perto da costa. Uma das caracterísitcas da espécie de ambos, é a capacidade de se transformarem em humanos ao saírem da água.
Como primeiro ponto a observar eu destacaria a direção de arte do filme. Cores bem saturadas e contrastantes tanto nos personagens quanto nos cenários que nos levam a uma viagem a um belo dia ensolarado de verão de um vilarejo italiano na costa mediterrânea.
Como segundo ponto, destaco a homenagem que o diretor fez questão de fazer a cultura italiana. E isso é notório já no início da exibição quando, ainda nas famosas Vinhetas da Disney e da Pixar ouvimos a canção “Um Bacio a Mezzanotte” seguido do clássico “O Mio Bambino Caro” ao invés do tradicional trecho de “When you wish upon a Star” e os efeitos sonoros da lamparina Luxo Jr. É a Pixar colocando sua marca buscando sempre se diferenciar da equipe da Disney Animation.
Além de outras referências musicais italianas como Rita Pavone e Gianni Morandi, dos cenários mediterrâneos, e dos personagens falando diversas expressões em italiano, o filme vai apresentando aos poucos outras referências culturais e históricas da Itália: Desta maneira será possível ver ali representados, diversas referências do Cinema Italiano como A Doce Vida, de inventores como Leonardo da Vinci, de cientistas como Galileu, de obras litérárias como Pinocchio, de obras arquitetônicas como o Coliseu, automobilisticas como a Moto Vespa e até mesmo a paixão dos italianos por Futebol. São tantas as referências, que este resenhista não pôde deixar de pensar no trecho “É gialla tutta la campagna” da música La Strada de Claudio Chieffo durante uma cena específica, onde os personagens principais se imaginam passear de moto numa estrada florida.
Além de referênciar a cultura italiana, é notória também a homenagem que Casarosa fez ao cineasta de animação Japonês Hayao Miyasaki. Os fãs mais atentos do Estúdio Ghibli poderão notar no Design dos personagens, principalmente nas expressões faciais, no formato das ondas nas animações de água, nas cores utilizadas nos cenários, assim como na escolha da costa mediterrânea como palco principal do filme, as referências a diversas obras animadas do veterano Japonês. E é tão explícito que o nome da pequena cidade Porto Rosso é uma alusão clara ao nome do filme Porco Rosso, de 1992. Não é a primeira vez que a Pixar homenageia Miyasaki. Em Toy Story 3, temos a presença do simpático Totoro, personagem de Miyasaki, e que está presente como um dos Brinquedos coadjuvantes do filme.
Além dos aspectos visuais e sonoros, a história também é um ponto a ser destacado. O diretor que traz para o filme acontecimentos de sua própria infância (Alberto é o nome de um de seus melhores amigos), busca afirmar que “amizades mudam vidas.” E é esse um dos maiores triunfos do filme ao representar de forma tão lúdica a passagem da infância para a adolescência. Por um lado, Luca enfrenta o dilema entre obedecer a rigidez de sua família, fruto de uma super proteção e medo dos males do mundo e das influências externas; e o desejo de conhecer mais as novas descobertas apresentadas pela amizade de Alberto.
A história ainda fica mais interessante quando os dois, já passeando pela superfície, conhecem Giulia, filha de um pescador (e caçador de monstros marinhos) que sempre passa as férias escolares no Vilarejo. Por passar boa parte do ano fora, morando com sua mãe em Gênova, Giulia é tratada pelos populares como uma menina estranha e ao ver o tratamentos dos locais com Luca e Alberto, ela corre pra socorrê-los. A amizade e acolhimento de Giulia desperta em Luca os interesses pelos estudos e Alberto começa a ter inveja que o amigo tenha outra companhia além dele. E essas relações de amizade e ciúmes que irão desenrolar a jornada de cada integrante do “time dos excluídos” (nome que eles mesmos se dão).
Esses elementos convidam o espectador a realizar uma viagem no tempo e olhar a própria história de vida: Todos tivemos aquele amigo que nos provoca a arriscar um pouco mais na vida, tivemos também amigos que nos convidam a mostrar a beleza das descobertas do mundo, também temos aquelas pessoas que representam as adversidades, temos o momento que vemos a necessidade de começar a sair um pouco da bolha protetora dos pais e, acima de tudo, o momento em que, como pais, vemos que uma educação efetiva é uma educação para a crítica e que aposta na liberdade do outro. E que quando apostamos nesse risco educativo, podemos muitas vezes nos surpreender com os caminhos que nossos filhos seguem e que lá está, na mochila dele, diversos valores que ensinamos.
Como toda produção da Pixar, Luca é aquele filme que vai além do mero entretenimento. É um filme que nos provoca a pensar quando somos cada um daqueles personagens fantásticos daquela jornada e quando notamos e abraçamos aquelas amizades que, ao apostarem na nossa liberdade, mudaram a nossa vida.
Gabriel Cruz é Designer, Animador, Professor e Pesquisador da área de Animação da Universidade Federal Fluminense