<em>O início de uma “história extraordinária”</em>, de Marina Massimi e Olívio Pereira.

CL em São Paulo. O início de uma “história extraordinária”

Um livro propõe uma reconstrução histórica dos anos setenta e oitenta, trazendo depoimentos de testemunhas da época e documentos inéditos das primeiras visitas de Giussani a São Paulo
Cecilia Canalle

A história, olhada de longe, parece ser um grande jogo de xadrez operado pela Providência, cujo desenho só conseguimos ver a posteriori. Peças ao redor do mundo se movem, no seu absoluto livre-arbítrio, respondendo positiva ou negativamente ao que a vida provoca, convida, propõe. O conjunto de decisões compõe uma grande história. Neste caso, a história do nascimento de uma comunidade cristã: o Movimento Comunhão e Libertação (CL) em São Paulo.

A obra O início de uma “história extraordinária” (São Paulo, Companhia Ilimitada: 2023) é um inventário desse percurso, com grande quantidade de dados e referências a palestras, encontros, retiros, viagens, cartas, depoimentos e até anotações pessoais precisas e históricas. Elas, aliás, comprovam a importância dessa trajetória – em primeiro lugar para seus autores: Olívio Pereira e Marina Massimi – pelo cuidado em anotar, guardar e recuperar falas de Dom Giussani ditas há 30, 40 anos!

E como toda boa história, ela começa sem se ter ideia de seu desenho final. A de CL, por exemplo, começa, sem ligação aparente, com Marcello Candia, um rico industrial milanês que em 1964 “vendeu sua indústria química, doando todos os bens e a sua própria vida aos pobres da Amazônia”. Ele era próximo dos padres do Pontifício Instituto das Missões Exteriores (PIME), de Macapá. Sua vocação parece não ter relação com a nossa. Mas, no seu desejo de missão, convidou Giussani para visitar o Brasil, em 1960.

Nessa época, Giussani já está ministrando aulas no Liceu Berchet, de onde nasce uma comunidade de jovens muito vivos. Lá encontrou e estabeleceu laços profundos. Um deles, Pier Luigi Bernareggi (Pigi), a partir do envolvimento nessa experiência, em 1964, veio como missionário para o Brasil.

Com a vinda de Pigi e alguns outros jovens, Dom Giussani passa a pedir um dízimo para os membros da comunidade na Itália a fim de sustentar aqueles que vinham em missão para o Brasil. O padre Luigi Valentini, conhecido como Gigio, era um dos que faziam essa oferta e, ao fazer isso, começou a considerar a hipótese de vir, ele também, para o Brasil. Então, padre Gigio insiste, junto ao seu bispo, para que lhe permitisse sair em missão. Ele morava perto de Fermo onde Vando Valentini e João Carlos Petrini se encontravam estudando na mesma Universidade e morando no mesmo alojamento. A ideia da missão contagia os três.

Em 1970, Dom Perini finalmente assina a carta que oferecia o padre Luis Valentini (Gigio) e o leigo João Carlos como missionários para o Cardeal de São Paulo, que respondeu pronta e positivamente. Eles vão morar em uma paróquia em São Mateus, na zona leste da cidade, onde encontram, morando ali, o jovem Cláudio Pastro e Rosetta Brambilla. Esta morava junto às Irmãzinhas da Assunção e foi uma das primeiras a se lançar em missão. Posteriormente, Rosetta foi para Belo Horizonte onde – por laços de amor, inteligência e trabalho – construiu as Obras Educativas Padre Giussani. Mas essa é uma outra história extraordinária, que ainda precisa ser escrita.

O fato é que o caminho para o Brasil já estava estabelecido e entra na história o grande padre Ricci, que vinha três vezes por ano a São Paulo para acompanhar os nossos missionários. Eles, junto com Giussani, ficam muito amigos dos teólogos Fr. Gilberto Gorgulho e Ana Flora Anderson que, por sua vez, eram muito amigos de Dom Paulo Evaristo Arns. E foi assim que foi sendo pensado um projeto de presença cristã na universidade. Em 28 de junho de 1975, João Carlos Petrini é ordenado padre em Fermo, na Itália. Logo mais, em setembro do mesmo ano, Dom Paulo o chama para ir encontrá-lo em Roma, e o convida para assumir a responsabilidade da Pastoral Universitária em São Paulo.

Por conta disso, em 1977, foi inaugurada a Casa Cultura e Fé, no bairro de Perdizes, onde passam a morar o padre João Carlos, e os leigos Vando Valentini, Claúdio Pastro e Eduardo Cruz. A Casa Cultura e Fé era um lugar onde a experiência não só era estudada, mas ela acontecia ali, um lugar de agregação. Você queria ir lá para participar de uma comunhão que existia ali. Não era um somente um centro organizativo. Havia, também, uma forte dimensão cultural.

O grande e futuro artista da Basílica de Nossa Senhora Aparecida, Cláudio Pastro, cursava Ciências Sociais na PUC. Mas o padre Ricci viu suas pinturas e logo reconheceu que ali estava um artista e promoveu exposições suas – quando ainda não era reconhecido – na Alemanha, Suíça, França, Itália... vindo a se tornar um dos maiores pintores sacros do mundo e o responsável pela azulejaria da Basílica de Aparecida.

Por volta dessa época, em 1976, como encontra-se registrado no livro das Crônicas do Mosteiro Beneditino Nossa Senhora da Paz, em Itapecerica da Serra, pela irmã cronista, Mônica Castanheira, OSB, vão acontecendo uma série de encontros, idas de convivência e com as monjas. Uma amizade profunda que perdura até hoje e que deu consistência a muitos passos do Movimento.

O xadrez da existência tem um tabuleiro mundial. Será que se o industrial Marcello Candia não decidisse vender tudo e construir um hospital em Macapá trazendo Giussani para conhecer esse lugar, o Movimento teria começado no Brasil? Sem o sim desses primeiros “apóstolos”, não sei o que teria acontecido com as centenas de pessoas que o Movimento encontrou porque aprendemos com Giussani que “não existe amizade humana se ela não é uma ajuda ao destino.” (Giussani, Cadernos Culturais, out. 1980, p. 4, apud O início de uma “história extraordinária”).

O início de uma “história extraordinária” conta parte desse grande caminho de salvação onde providência divina, incrivelmente, se submete ao sim de cada um.


* A obra foi editada pela Companhia Ilimitada e pode ser adquirida no site da editora e nas principais livrarias do país.