Mapa da proporção da população de 10 anos ou mais de idade de religião declarada Católica Apostólica Romana, por município em 2022 (© IBGE)

Os limites da tradição social: de Dom Giussani ao Censo

No início de junho, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) divulgou o recorte por religiões do Censo Demográfico 2022. Aqui, uma reflexão sobre o tema
Francisco Borba Ribeiro Neto

Há anos, a divulgação dos dados de religião dos Censos causa alvoroço na sociedade brasileira. A queda porcentual dos católicos na população é um fenômeno constante nos últimos 50 anos que se confirmou também nesta última divulgação dos resultados de 2022, ocorrida no início de junho. Desta vez, a queda da proporção de católicos e o aumento de evangélicos foi menor do que o previsto, abrindo espaço para uma série de discussões sobre o momento em que os evangélicos serão mais numerosos que os católicos, se é que esse momento acontecerá no Brasil.

Boa parte dessas especulações se devem a motivos inadequados: saber qual é o peso político das Igrejas cristãs, tanto a católica quanto as evangélicas, em nossa sociedade – ou uma espécie de competição equivocada sobre qual é a “religião mais forte”. As religiões têm influência política em qualquer sociedade, é justo que os políticos queiram conhecer essa influência (para melhor servir a seus eleitores, não para fazer jogos de cooptação política ou favorecimentos), mas não é isso que é determinante em nosso encontro com Cristo. A Verdade não é uma questão política ou mesmo estatística. Deus não será menos verdadeiro em função dos números do Censo ou do peso político dos cristãos.

Por outro lado, existe um dado inegável com o qual todos os analistas concordam: o que estamos vendo é a erosão de um catolicismo que se mantinha a partir da inércia da tradição social, por força do hábito, pela presença frequente nos ritos católicos – não por uma real conversão a Cristo. E esta erosão do catolicismo, no Brasil, não é acompanhada pela perda da fé, mas por uma busca, em outras denominações cristãs ou outras religiosidades, de um encontro real com Deus. Esta tradição social não deve ser confundida, é bom lembrar, com a grande Tradição do magistério, que é a sabedoria e a própria vida da Igreja Católica, transmitida de geração em geração desde os tempos apostólicos. A tradição social é determinada, basicamente, pelos hábitos e ideias das pessoas, enquanto a Tradição da Igreja é a própria condição para a transmissão da mensagem cristã ao longo dos séculos.

Um testemunho capaz de enfrentar os desafios de nosso tempo

Numa hoje longínqua década de 1950, na Itália, Dom Luigi Giussani iniciou o caminho que levou ao nascimento de Comunhão e Libertação justamente da constatação de que um cristianismo que se baseasse nas tradições sociais não poderia se manter ao longo do tempo. Percebeu que missas lotadas e valores sociais hegemônicos não eram o bastante para manter viva a fé. Era necessário que a fé encontrasse, tanto na inteligência quanto na vida prática, as razões justas para que acreditemos. Não é uma questão meramente intelectual, nem só comunitária. Tanto a inteligência quanto a vida prática precisam ser moldadas pelo encontro com Cristo, para que possamos crer. Por isso Dom Giussani insistia tanto que nossa amizade é uma companhia guiada: um fenômeno social visível no mundo, que se manifesta no afeto e na partilha tanto dos momentos bons quanto dos difíceis, mas guiada rumo ao Destino, para que tenhamos a consciência de que, no fundo, é Deus quem age em nossa vida por meio dessa companhia.

Um dos títulos mais significativos das obras de Dom Giussani é, justamente, È, se opera, de 1994. A força da expressão italiana se perde numa tradução rigorosa ao português, que poderia ser “Existe, se faz acontecer”: a existência de Deus é comprovada por nós pelas coisas que Ele faz acontecer em nossas vidas. O testemunho de uma vida transformada no interior da comunidade cristã – e não uma tradição formal, por mais justa que seja – é o que mantém a fé viva ao longo dos séculos.

As frequentes críticas à chamada “teologia da prosperidade” frequentemente ocultam esse dado humano fundamental da expansão evangélica: crescem na medida em que oferecem um Deus presente na vida das pessoas, uma comunidade acolhedora e uma graça divina que permitem que o fiel supere as muitas dificuldades da vida, as doenças, a pobreza, os vícios, a desagregação familiar. A partir de nosso conhecimento da doutrina católica, poderemos levantar inumeráveis críticas e objeções à pregação de muitos pastores neopentecostais, mas não podemos esquecer que Deus nunca deixará de acompanhar aqueles que O procuram com coração sincero.

Dom Giussani nos legou uma inteligência aguda para reconhecer a ação de Deus no mundo – e para entender os vários aspectos do dinamismo religioso de nosso povo. O Censo não nos interessa por uma questão de luta pelo poder ou de concorrência religiosa, mas nos interessa porque nos ajuda a ter mais claro o que realmente importa em nossa vida, nos ajuda a entender qual é a missão que Deus nos confia, a partir do encontro que fizemos com Cristo.