
Sustentada por um olhar
Rosa Brambilla foi uma das primeiras missionárias de CL a vir da Itália para o Brasil. Um testemunho de como um sim dado na juventude constrói a Igreja de CristoEntre os dias 4 e 5 de maio deste ano, foram realizados os Exercícios Espirituais dos Universitários de CL no Brasil. O tema foi “Eu vos chamo amigos”. Na noite de sábado, Rosa Brambilla, a Rosetta, de Belo Horizonte, foi convidada para dar um testemunho. O evento foi transmitido para os vários pontos de encontro do retiro, espalhados em diversas cidades do país, do qual participaram 120 jovens. A seguir, alguns trechos desse testemunho:
Então, vou contar primeiro, brevemente, um pouco da minha história. Eu nasci em 1943, em plena Segunda Guerra Mundial. Eu perdi meu pai em janeiro de 1948. O papai trabalhava com o meu avô, e quando ele morreu, mamãe ficou sem nada, porque quem era o dono do negócio era o meu avô. E para mim foi muito duro. O fato de ser filha de uma mãe viúva sempre foi muito dolorido para mim, como se fosse menos, comparado com as minhas amigas que tinham pai. Mas, a um certo ponto, eu tinha 17 anos, encontrei algumas pessoas – Antonio, Umberto, Marina – que me convidaram para uma festa. Se usava naquela época fazer festas nas casas, se dançava… E essa festa foi diferente das que eu estava acostumada, porque estavam interessados uns nos outros, sentavam perto da gente, se conversava, enfim, não era só dançar por dançar, ou beber, mas tinha uma atenção. Fiquei marcada por essas pessoas. Depois me convidaram para outros encontros. Morávamos em Bernareggio e eles iam numa missa em Milão, onde Dom Gius celebrava, e a cada 15 dias ele fazia o que se chamava Escola GS [Gioventù Studentesca, Juventude Estudantil, primeiro núcleo de Comunhão e Libertação]. Eu fui com eles. O Antonio era o único que tinha o carro, e me levava. Mas eu fiquei muito marcada pelo Dom Gius, não só pelas palavras, mas pela maneira dele ser.
Um dia, saindo da missa, ele me olhou e me falou em italiano: “Ciao, bambina!”, que quer dizer, “oi, menina”, porque eu era pequenina. Mas a partir desse olhar dele, eu falei: “Quero ver esse olhar sempre”. Então o que eu fazia? Nem sempre o Antonio tinha possibilidade ou ia para Milão de carro. Mas para encontrar o Dom Gius eu fazia 5 km a bicicleta, deixava a bicicleta ali na estação, pegava o trem e pegava o ônibus para ir lá. Chegava para assistir à missa e depois participar da Escola GS. Isso na ida e na volta. Mas para isso eu não tinha dinheiro, porque a minha mãe me dava 200 liras e naquela época, não era suficiente, de jeito nenhum. Então, o que eu fazia? Eu trabalhava como decoradora em porcelana, e comecei a levar trabalho extra para casa, de pintura. Tudo o que eu ganhava nesse trabalho que eu fazia à noite, eu guardava para poder ir em Milão, pegar o trem, pegar o ônibus… Digo isso porque aquilo que te fascina, que te deixa deslumbrado, te atrai, não tem preço. A custa de trabalhar dia e noite para poder ir, mas valia a pena.
Então eu ia à missa, na Escola GS, almoçava fora, e à tarde ia na caritativa, com outras pessoas. Lembro-me de uma música que dizia: “Que me importa se tenho sapatos sujos, mas o meu coração está feliz”. Então eu chegava na estação para pegar a bicicleta e ir até a minha casa, com essa música na cabeça. Cantava dizendo: “Mas que que importa se eu tenho um sapato sujo de barro?”. Porque a caritativa era como se fosse aqui no interior.
E esse gesto que o Dom Gius propôs para nós, como caritativa, era viver o tempo livre aos domingos de uma outra forma, que não era ir ao cinema, ou ir dançar, mas era fazer uma experiência de compartilhar a vida com os outros. E isso, depois de um certo tempo, não sei se um ano ou dois, eu queria para sempre. Então, fui encontrar o Dom Gius e falei: “Olha, eu quero isso para sempre. Como é que eu faço?” Então ele me indicou um lugar, para verificar o que eu queria, e nesses encontros percebi que a minha vocação era dar a minha vida a Deus, servindo aos outros. Então entrei numa congregação que se chama Irmãzinhas da Assunção, cujo carisma é cuidar da família. Comecei a ir na casa de uma família cuja mãe estava doente e naquela época não tinha assistência como tem agora. E em Milão, é como se fosse São Paulo, no sentido de que o pessoal do sul da Itália ia para Milão para achar emprego, e não tinha parente perto. Então, se a mãe adoecia, não tinha ninguém para cuidar dela. E nós íamos para cuidar da mãe.
Depois Dom Gius, a um certo ponto, me chama, e me pergunta se eu estava disposta a beber o cálice. Eu não sabia o que queria dizer, mas disse sim para ele. E depois ele me deu um bilhete grande, que era um bilhete de navio. Era para o dia 15 de fevereiro de 1967. Eu tinha 23 anos Quando ele me deu o bilhete com data, eu tremi, porque eu desejava muito, eu vibrei. Eu falei: “E agora? Como é que eu vou falar para a minha mãe?” Minha mãe não sabia nada, nada, nada. Quase que eu não vivia em casa, porque eu vivia mais fora do que em casa, voltava só para dormir. Aí o Antonio foi comigo, que era o responsável do meu grupo, e a mamãe já esperava porque nunca me via, sabia que a minha vida era para os outros. O que me fascinou para vir ao Brasil? Em 1962, o Dom João Resende Costa tinha pedido a Dom Gius se não teriam jovens, no movimento estudantil, dispostos a vir em missão. Então, Dom Gius começou a enviar algumas pessoas para o Brasil. Eram o Pigi, o Paolo, o Checo, a Nicoleta, a Maria Rita, etc.
A gente recebia as cartas deles, e eu ficava fascinada! Nossa Senhora, como eu queria viver como eles viviam. E a certo ponto, quando falei para o Dom Gius desse desejo, que gostaria de dar a vida assim, então ele me fez conhecer as Irmãzinhas da Assunção, que trabalhavam na casa dos pobres, eu vi e entrei nessa congregação. Porque eu queria ser uma presença como Nossa Senhora: simples, silenciosa, mas presente, estava ali. Hoje não é que mudei muito, não é tanto o fazer, mas o ser, comunicar aquilo que a gente carrega dentro. Esse que era o meu desejo no início e é hoje também.
No início o Dom Gius me mandava várias cartas, e essa amizade me sustentou e me sustenta até hoje. Numa ele escreveu: “Deus te colocou no mundo e te fez ir ao Brasil para ajudar os homens, para fazê-los conhecer Jesus Cristo e ajudá-los a viver uma vida cristã, que é a vida humana verdadeira. Ama Jesus Cristo, Rosetta, com tudo de si, e usa de caridade com todos, até o ponto de arrebentar o coração [até teu coração explodir, arrebentar]. A tua mãe tão bondosa, certamente te quer assim. Te abraço e te encorajo. Teu Dom Gius”. Nessa carta aqui, o fato de obedecer a Dom Gius e de ser aquilo que eu sou, inclusive com os amigos, de continuar, de ser clara com eles, sincera, é aquilo que manteve a minha amizade até hoje. Eu sou ainda amiga de algumas pessoas que foram embora da companhia por ser aquilo que eu sou. Não é que eu mudei de bandeira, porque eles foram de um lado e a gente foi atrás deles. Mas permaneci firme naquilo que eu encontrei, que era Cristo.
Isso para dizer que o que a gente encontra, de verdade, é para sempre. Se eu penso nesse olhar de Dom Gius para mim, quando ele saiu da igreja e me olhou, me falou “Ciao, bambina”, eu nunca podia pensar que se tornaria um método, um método educativo. Porque na nossa creche – as Obras Educativas Padre Giussani –, o nosso método é olhar, olhar para a realidade, olhar para tudo, para os detalhes, para tudo. Nunca podia pensar que disso podia nascer uma obra, digamos, com esse olhar. Quando eu cheguei ao Brasil era a época da ditadura e as cartas demoravam 15, 20 dias, até um mês para chegar. Eu não via a hora… A realidade era difícil e dependendo daquilo que a gente falava, a gente podia, até na igreja, podia ser visto como subversivo. Porém, todas essas dificuldades foram para mim uma coisa grandiosa. Porque sempre me fizeram, primeiro, ir a fundo daquilo que eu encontrei. Mesmo nas dificuldades, o que me interessava era Ele, era cada vez mais me aproximar de Cristo. Como isso acontecia? Para mim, servindo aos outros, porque Ele, para mim, se manifesta de uma forma visível através das pessoas: das minhas mães, dos meninos…. Talvez por Dom Gius me olhar como eu era, simples, do jeitinho que eu era, pobre, enfim… Esse olhar que está grudado ainda hoje, é o olhar que eu percebo que a gente tem com as pessoas que precisam mais.
Quando cheguei eu trabalhava como enfermeira, eu me lembro, eu fazia os curativos. Porque naquela época não tinha posto de saúde. Eu lembro que vinha para minha casa com cortes… E naquela época a gente fazia sutura, fazia de tudo. E quanto mais as pessoas chegavam todas destrambelhadas, mais eu gostava. De verdade. Quer dizer, por que a dor me atrai? Eu ia dormir e pensava nessas mães que não tinham nem onde colocar os filhos. Aí que comecei, aos trancos e barrancos, uma espécie de escolinha. Em frente à casa de Dona Delvina, era um quintal que ela tinha, onde nós fazíamos catecismo nos bancos que o Pigi me deu, que a gente pintou depois. A gente começou a escolinha assim. Mesmo não sabendo. Depois procurei pessoas que tivessem magistério, naquela época, para ajudar.
Mas para dizer que o olhar, esse olhar que está dentro de mim, que é o olhar de Dom Gius, quando você vê uma coisa, não pode dizer “eu não a vi”. Só penso nessas crianças, nessas mães que precisavam de abraço, de ajuda, sobretudo de alguém que dissesse “olha, você vale”. Não podia imaginar que depois podia nascer uma obra que agora a gente acolhe oitocentas crianças. O olhar de Cristo é como diz aquela música: “Vista assim do alto, mais parece o céu no chão; em Mangueira a poesia feito um mar, se alastrou” – isso, se alastra. “E a beleza do lugar, para se entender, tem que se achar. Porque a vida não é só isso que se vê, é um pouco mais”. Precisa entrar dentro da vida, para poder entender, para poder abraçar. Para mim, essa música me descreve muito. Porque tem que entrar dentro para poder entender. Seja com as pessoas, seja com a realidade… Porque alguém entrou dentro de mim também. Penso em Dom Gius, penso nas pessoas que me abraçaram. Foi um entrar dentro… E aos poucos, do jeito que a gente é, esse olhar te plasma, te faz ser, te faz ser Ele, não sei se dá para entender. Porque nós somos constantemente olhados por Ele. Porque a minha miséria, o que eu sou, é a todo instante olhado e abraçado. Porque a gente não é capaz de olhar se não somos olhados. Olhar a realidade, perceber a realidade como beleza, mesmo na favela. Porque são pessoas grandes e bonitas que estão aí. É só dentro de um olhar que te olha constantemente a gente consegue ficar de pé. Mesmo nas dificuldades, em tudo. Esse olhar te sustenta. Até hoje esse olhar me sustenta. O olhar de Dom Gius para comigo é o olhar de Cristo para comigo. É igual, é o mesmo olhar. O olhar de Dom Gius era o olhar de Cristo, depois entendi que era Cristo.
(Notas não revisadas pelo autor)