Foto de Kika Antunes

Uma leveza no olhar

Uma assistente social de Manaus conta sua trajetória de trabalho pessoal durante a pandemia, sendo ajudada pela Escola de Comunidade, o texto e encontros propostos pelo Movimento. E surpreende-se grata e em paz

O percurso de Escola de Comunidade – O Brilho dos olhos. O que nos arranca do nada? – é muito correspondente ao momento no qual eu vivo, no qual a sociedade vive. E eu me dava conta, primeiro, de ficar muito grata por ter uma companhia que me arranca do nada, ou melhor, que faz o meu grito ficar sempre vivo, o meu desejo ficar sempre aceso.

Então, cada ponto que trabalhamos na Escola de Comunidade, que fala desse grito, da existência de Alguém que o ouve, que retoma a minha humanidade como ela é, que fala de silêncio, vai enchendo de significado todo o tempo que eu vivo, não fica nada fora: nada.

Neste tempo de pandemia, eu trabalhei muito em casa; fiz home office e telemonitoramento. O que significa isso? Na Secretaria de Saúde, ligamos para as pessoas que tiveram Covid ou que ficaram hospitalizadas e depois receberam alta. Como foi rico e intenso esse trabalho de ligar e encontrar as pessoas, e encontrar a necessidade do outro, a carência do outro, às vezes a depressão, a falta de comida...

Uma das necessidades que encontramos nessas realidades foi a de pão: objetivamente, tivemos que fazer uma articulação para conseguir cestas básicas para inúmeras famílias, com ONGs de amigos nossos e a interação muito grande da equipe com que eu estava trabalhando. Também encontramos várias situações, questões familiares com o pai alcoólatra, pai que estava na rua abandonado, etc.

Assim, deparando-me com essa situação, a primeira constatação é que eu tinha uma certeza a comunicar, podia comunicar a minha pessoa ao encontrar esse outro por telefone. Para algumas pessoas tivemos que fazer muitos contatos, que extrapolaram o horário de trabalho, mas são pessoas que, de certa forma, se tornaram amigas ou com as quais, por problemas de saúde ou sociais, tivemos que falar várias vezes. E isso tudo foi me enchendo de a certeza de que, ao encontrar o outro, eu tenho algo a comunicar, eu tenho uma resposta que está na minha pessoa.

O texto todo tem sido muito operante na minha vida. Uma coisa que me ajudou muito foi a retomada do silêncio e da oração. E isso se deu como uma graça, porque meu marido, Bruno, começou a participar de um Terço dos Homens virtual sem saber rezá-lo direito, de modo que precisou da minha ajuda. Na verdade eu é que fui ajudada, porque tinha um desejo muito grande de rezar um terço todos os dias e sinceramente não era capaz, não conseguia, tinha uma fragilidade muito grande em relação a essa fidelidade. E através do Bruno passamos a rezar todos os dias.

Isso se tornou uma ajuda muito concreta, muito real, muito operante na minha vida! E como tudo me ajudou a fazer silêncio, eu não experimentei aflição. Eu experimento que o meu grito está sempre aceso, o meu desejo está sempre aceso, mas eu tenho uma serenidade muito grande. Eu tenho me surpreendido com a leveza com que olho para a vida, para os meus problemas, para os problemas do mundo, para todas as tragédias e catástrofes que acontecem no mundo, mas experimentando uma serenidade e uma certeza. Olhando para minha humanidade, podendo olhar para a humanidade do outro.

Como cresceu essa leveza? Acho que primeiro com uma graça muito grande, que eu nem mereço. Mas também com a retomada da Escola de Comunidade, após um período em que o meu grupo não conseguia fazer as reuniões on-line; desde que retomamos, fomos ajudados a focar e a trabalhar. O momento de encontrar o outro faz com que eu me empenhe na minha vida, me empenhe no meu eu, me empenhe no meu trabalho pessoal. Então esse foi um ponto de ajuda muito concreta.

Outro ponto concreto foi a retomada dos encontros com nossa Fraternidade; dando-me conta da humanidade de cada um, mas sobretudo dando-me conta da minha humanidade: eu sou amada com esta humanidade que tenho. Deus me quis assim.

Há algumas semanas retornei para o trabalho presencial, que também para mim representou um recomeço. É como se na pandemia, no tempo em que eu fiquei em casa, no tempo em que eu fiquei fazendo outro trabalho, no tempo em que eu fiquei me dando conta de mim mesma, é como se eu tivesse renovado o meu olhar e a minha vida. Posso dizer que eu me encontro com uma gratidão muito grande no meu coração. É importante entender o que é o niilismo, como ele se infiltra na nossa vida, no nosso pensamento, no nosso estar, no nosso viver, no nosso comodismo, na tentação que às vezes temos de nivelar o nosso desejo por baixo, por aquilo que não corresponde, não enche. E aí vem a nossa companhia maravilhosa, misericordiosa, que nos arranca do nada e nos ajuda a olhar para o significado da nossa vida, da nossa existência. Isso me dá paz, me dá muita gratidão.

Neide, Manaus (AM)