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Educação. Até onde nos leva essa “saudade”

Um professor de Belo Horizonte compartilha sua experiência do último ano, com as atividades modificadas pela pandemia. «Ao “topar” responder ao pedido de uma estudante, hoje dou aula pelo WhatsApp»

“Dito, eu às vezes tenho uma saudade de uma coisa que eu ainda não sei o que é, nem de donde, me afrontando...” (Miguilim - João Guimarães Rosa)

Estou relendo Miguilim de Guimarães Rosa. Ao me deparar com essa fala do personagem principal, não me contive: eu também tenho esse fundo, do fundo. Trabalhando em duas escolas públicas, após a chegada da pandemia em minha cidade, ficamos um pouco desnorteados. Tinha duas opções: ou ficava lamentando a situação ou aproveitava aquilo que acontecesse para me dar mais conta de quem eu sou, não só
individualmente, mas como pessoa, como aquele ser que deseja sempre mais daquilo que enxerga.

“Em um belo dia”, como nos relatam, muitas vezes as avós e suas “estórias”, uma estudante me chama pelo Messenger, solicitando atividades, dizendo “que não aguentava mais ficar sem estudar”, sem fazer nada. Nesse momento, as escolas públicas de Belo Horizonte municipais não tinham começado alguma tentativa de comunicação com os alunos.

Havia exatamente dois meses de escolas fechadas, mas às 10h33 da manhã, fiquei surpreso com a atitude de uma jovem que me propunha conversar com a diretora e usar alguns aplicativos de chamadas.

Enquanto as escolas particulares já estavam tendo suas aulas virtuais, nós da escola pública presenciávamos escancaradamente as diferenças sociais, culturais e educacionais que, muitas vezes, como se diz aqui em Minas, nos deixavam “num mato sem cachorro”. Ao ler sua mensagem, que foi ao encontro desse desejo que já me escancarava o “fundo do meu fundo”, não consegui ficar parado. Solicitei a ela que criasse um grupo de WhatsApp com os colegas de que tinha o contato, e me colocasse nele.

Eu não tinha nenhuma exigência da Secretaria de Educação para começar algum trabalho. Só retornaríamos as atividades um mês depois para começarmos a pensar em como faríamos com os estudantes. Mas como não responder àquela “maturidade” que via surgir na estudante de 12 anos do 6° ano?

Diante das infinitas dificuldades e possibilidades de comunicação virtual dos estudantes, e da minha limitação com os recursos da informática (apesar de gostar de mexer ou “fuçar”), aprendi muito! Encontrei nesse caminho, colegas que, em reuniões virtuais, insistiam que a prefeitura (o “governo”)
ainda não reconhecia essas ações “individuais” como válidas. Por isso, não seriam contabilizadas como dia letivo. E não foram. Eu havia começado a trabalhar dia 18 de maio e o primeiro momento das escolas de forma conjunta, efetivamente tendo que enviar atividades aconteceu em setembro (ocorreram as pesquisas socioeducativas, para conhecer a realidade
de cada comunidade, a busca pelas famílias de que não conseguíamos contato, anteriormente, a partir de meados de junho). Algumas poucas escolas começaram antes seus trabalhos, mas eram escolas mais centrais. As da periferia, não tiveram tanto acesso aos estudantes imediatamente, como as minhas duas escolas.

Hoje, revendo esse caminho, tendo trabalhado nas duas escolas muito mais que a maioria de meus colegas, me sinto feliz. Não é uma sensação “Poliana”, como alguns podem pensar. Efetivamente eu reconheço o desenvolvimento profissional que tive, o crescimento pessoal, que me ajudou e ajuda a lidar com meus filhos, esposa, mãe, irmã...

Ao “topar” responder ao pedido de uma estudante, hoje dou aula pelo WhatsApp, enviando as atividades-formulários, corrigindo os cadernos de atividades mais empolgado ainda que em relação a quando estava presencial! Nesse momento, é preciso perguntar: mas de onde nasce tudo isso? O que sou? Para onde isso vai me levar? Convido todos a caminhar comigo para redescobrir essas respostas, como fez o Miguilim de João Guimarães Rosa!

Prof. Marcelo Belga, Belo Horizonte (MG)*

*Esta carta foi publicada na Revista Passos, julho de 2021