
Vulneráveis e extremamente amados
O desejo de uma menina por estrelas, o silêncio de uma capela vandalizada, a beleza das oliveiras sem fruto e a espera durante um ciclone: tudo se entrelaça na descoberta de uma fé que ilumina a vida inteiraViajei com meu marido, um casal amigo e a filha pequena para o feriado de Carnaval. Fomos para uma cidade no interior, cercada de montanhas. Um lugar realmente bonito, onde a grandeza do que nos cercava nos deixava muitas vezes em silêncio.
Na primeira noite, provocados pelo desejo da menina, fomos “caçar” estrelas. Logo percebemos que o desejo da pequena era também o dos adultos, a ponto do dono da pousada, que também era encantado com as estrelas, apagar as luzes do lugar para que fosse mais fácil estar diante do céu. Conversando com ele, falei do meu amor pelo pôr do sol, que não pode ser visto devido às montanhas altas que nos cercavam. Ele então me disse: “Amanhã acorde cedo, venha para esse lugar no qual estamos, posicione-se aqui e poderá ver o nascer do sol”.
No dia seguinte curiosa como uma criança, acordei bem cedo e me dirigi sozinha ao lugar indicado. Fiquei um bom tempo contemplando a aurora e percebemos a reação da natureza, “a Letícia da terra”, como diz o canto. Pouco a pouco o Sol foi chegando e de repente invadiu tudo, como uma explosão que ilumina as coisas, um calor que dava vida a tudo. Pensei na luz que estava na origem da criação do mundo, no clarão que estava na ressurreição de Cristo, na maravilha da presença, como diz a Escola de Comunidade. Fui invadida pelo desejo de rezar e de cantar. Pensei nas dificuldades que tenho enfrentado na família e no trabalho, nas experiências bonitas que tenho feito. Estava inteira diante daquela realidade que era feita para mim, impactada por aquele dom que me fazia refletir e ver as coisas nos seus devidos lugares.
Corri para contar aos amigos… as estrelas da noite anterior, o nascer do sol, a beleza das montanhas, as cachoeiras, a graça da nossa amizade, tudo estava ligado. Naquele mesmo dia falei com meu filho que mora na Austrália e soube que um ciclone se aproximava da sua cidade. O Mistério que me alcançava e me comovia com a beleza daqueles dias me interpelava de outra forma.
No café da manhã, enquanto conversava com os amigos e planejávamos o dia, decidimos rezar o Ângelus em uma das capelas pequenas que víamos na estrada de terra que subia a montanha onde estávamos. E assim o fizemos. Ao chegar à pequena capela, vimos que ela havia sido vandalizada, as imagens de Nossa Senhora estavam quebradas, corpos separados das cabeças, e as flores do pequeno altar espalhadas pelo chão. Ficamos alguns segundos em silêncio e logo começamos a arrumar a capela, procurar as cabeças das imagens, pôr as flores no vaso… não havia raiva, discursos, escândalos, só uma dor, um silêncio e um desejo de pôr o lugar em mínima ordem, como que dizendo que o malfeito não tinha força alguma. Depois rezamos juntos. Na cidade, participamos da missa de São Bento e o padre lembrava: estamos aqui porque somos muito amados.
No outro dia visitamos uma fazenda onde se fabrica azeite. Um lugar belíssimo onde havia 10 mil oliveiras e, devido à falta de frio na região, nenhuma delas deu fruto. O rapaz que nos guiava na visita disse que não havia previsão de quando voltariam a colher azeitonas e retomar a produção. Tinham que esperar. O contraste entre a beleza daquelas árvores, a resignação daquele jovem e a perplexidade de quem participada da visita era incrível. Aquele lugar lindo vivia uma espera. Toda a estrutura criada aguardava, de forma resignada, a criação que não dependia deles. E no entanto a Beleza estava lá, nas árvores, na ordem, no sorriso daquele jovem.
Voltamos para casa depois do feriado, e eu segui acompanhando as notícias do ciclone que chegava ao lugar onde o meu filho estava, vi o mapa da cidade e que a casa dele estava na zona de risco. Pedi ao Senhor que acalmasse o vento, acompanhei os preparativos do meu filho e dos amigos para enfrentarem a tempestade: estocar água, comida, retirar o carro para um lugar alto, proteger as janelas… Não havia desespero, e isso é um grande milagre quando se tem um filho de 23 anos vivendo sozinho do outro lado do mundo. Continuei acompanhando tudo pela internet e pedindo ao Senhor que estivesse com meu filho e seus amigos, e protegesse todos os que viviam naquela cidade. No momento em que o ciclone tocou a terra lá na Austrália, mandei um áudio para o meu filho rezando um Pai-nosso, uma Ave-Maria e a oração ao Santo Anjo da Guarda. Senti como se eu estivesse ao seu lado, segurando a sua mão, fazendo companhia naquele momento. Ele me respondeu agradecendo as orações e dizendo que a luz havia acabado, que as paredes tremiam muito e que o barulho era muito forte. Ele e os amigos estavam juntos, sentados no chão, tocando violão e esperando que as janelas aguentassem bem o vento.
Vulneráveis em meio à força do vento. Somos assim na vida: pequenos, vulneráveis e extremamente amados, à espera d’Aquele que já está entre nós. Lembrei-me da experiência do nascer do sol na montanha e percebi que o mesmo Mistério que faz o Sol nascer e se pôr, faz as estrelas, as oliveiras, faz o coração do meu filho, o coração da pessoa que vandalizou aquela capela, o coração do jovem que produz azeite, o coração dos meus amigos e o meu, e faz também o ciclone que assustava o meu filho. Tudo em tudo, desejando ser tudo em todos.
Ao pensar nisso, fui invadida por uma paz inexplicável e uma gratidão por experimentar uma fé que tem a ver com tudo. Uma fé que não é uma fé de lua de mel, uma fé que não fica no alto da montanha, mas uma fé que desce para a concretude da vida. Sou grata por pertencer a um lugar que me ensina a perceber as coisas de forma integrada, mesmo no meio das minhas tantas distrações.
Patrícia, São Paulo