O julgamento das nações

Numa obra quase inclassificável, Dawson explica seu tempo além das questões políticas e econômicas, resgatando o papel "dos alicerces da cultura ocidental, construídos por dois milênios de história cristã". Conheça o livro do bimestre de abril e maio
Raul Cesar Gouveia Fernandes

Christopher Dawson (1889-1970) não foi um historiador comum. Em primeiro lugar, porque sempre esteve mais interessado em interpretar os grandes movimentos da história (a “longa duração”) do que em esmiuçar as características de uma única época, como é mais frequente entre historiadores. Mas a originalidade do autor decorre sobretudo da ambição de interpretar o sentido do desenvolvimento histórico, o que ele fez baseando-se em premissas pouco comuns nos meios acadêmicos, como é sua convicção acerca das origens religiosas da cultura. Este é o tema central do conjunto de sua obra, presente em livros como Religião e progresso (de 1929), A criação do Ocidente (1950) e A formação da Cristandade (de 1967, já resenhado na Passos). Como não poderia deixar de ser, a tese central do pensamento de Dawson enforma também O julgamento das nações, título de que nos ocuparemos aqui.

Dificilmente classificável, O julgamento das nações a rigor nem mesmo é um livro de história. Escrita em meio aos horrores da Segunda Guerra, a obra reflete sobre seu presente, ou seja, sobre a própria guerra e o radical desafio à civilização que ela representava. Lembre-se que em 1942, ano em que foi publicado o livro, os britânicos (como Dawson), incapazes de opor-se à formidável máquina de guerra alemã, enfrentavam contínuos bombardeios aéreos, que atingiam severamente a população civil; naquele tempo, as tropas de Hitler, invictas, ainda ocupavam boa parte da Europa, e parecia haver poucas chances de vitória. Era a “hora das trevas”, título sintomaticamente atribuído ao capítulo inicial da obra.

Mas Dawson não fica refém das angústias do momento: sua análise, como de hábito, busca situar os eventos em horizontes mais amplos. Para ele, a “guerra total”, que atingia patamares inéditos de violência, representa o ponto culminante de um processo de degeneração cultural cujas múltiplas raízes remontam a mudanças ocorridas nos séculos anteriores. Por isso, a primeira parte da obra chama-se “A desintegração da civilização ocidental” e analisa as origens desse fenômeno, entre as quais figuram a perda de unidade dos cristãos e o processo de secularização da cultura ocidental.

Embora inusitada, a linha de raciocínio se sustenta: afinal, as causas profundas da guerra (a ascensão de ideologias totalitárias e de nacionalismos xenófobos, a afirmação da onipotência do Estado, a prevalência de mesquinhos interesses econômicos e a luta pelo poder a qualquer preço) são resultado do esquecimento dos alicerces da cultura ocidental, laboriosamente construídos por quase dois milênios de história cristã. Abandonados os fundamentos que justificam a dignidade e a liberdade humanas, relativizados os critérios que norteiam a busca pela justiça e pelo bem comum, está aberto o caminho para a afirmação do poder totalitário. E tal poder assumirá formas ainda mais bárbaras quando amparado pela força da ciência moderna.

Por isso, segundo Dawson, temos a “árdua tarefa de conduzir, simultaneamente, a guerra em duas frentes. Temos de combater, pelas armas, a agressão do inimigo externo e, ao mesmo tempo, resistir ao inimigo interno – o crescimento em nossa sociedade do mal com o qual lutamos” (p. 77). O autor rejeita, portanto, a tese de que tudo não passava de confronto entre nações livres e regimes totalitários. Em sua opinião, não era a Alemanha o oponente a ser combatido, pois o verdadeiro inimigo seria certa concepção de homem e de sociedade, que, embora fosse associada ao regime nazista, também se insinuava nos países que o combatiam. Em suma, até mesmo a então incerta vitória militar não debelaria esse risco: se as causas profundas do surgimento do totalitarismo são espirituais, as soluções para tal desafio jamais poderiam ser unicamente militares, econômicas ou políticas.

Daí que na segunda parte do livro sejam apontados os caminhos para a “restauração de uma ordem cristã”. Não se trata de reflexão proselitista, como o título pode sugerir: Dawson sabia muito bem que a solução para os graves problemas descritos não depende do resgate de valores religiosos. Partindo do pressuposto de que “as causas de Deus e da humanidade tornaram-se uma só” (p. 73), o verdadeiro desejo do autor é contribuir para o restabelecimento da paz e da liberdade, numa sociedade em que o valor da pessoa seja efetivamente reconhecido.

Essa é a razão pela qual Dawson insiste no valor da esperança, apesar de tudo. Em trecho que parece ecoar conhecidos versos de T. S. Eliot, ele diz: “A fé cristã sempre afirmou a possibilidade da salvação humana. (...) Reconheceu, de maneira mais franca que a maioria das filosofias humanas, a realidade do mal e a extensão de sua influência sobre a natureza humana. Não obstante, declarou que esse animal carnívoro e lascivo, cujas paixões são infinitamente mais destrutivas e incalculáveis que a das feras da selva porque guiadas pela inteligência, é, apesar disso, capax Dei, capaz de adquirir uma natureza espiritual e alcançar uma finalidade divina” (p. 179).

Para o leitor de hoje, como se vê, as reflexões de O julgamento das nações continuam atualíssimas. O fim da guerra não tornou a obra ultrapassada, justamente porque sua reflexão transcendia a conjuntura militar ou política daquele tempo. Tanto é assim que, não obstante a derrota nazista, temas como o enfraquecimento da democracia liberal, o controle da opinião pública e a instrumentalização da ciência, entre tantos outros abordados no livro, permanecem no centro de nossas preocupações: sintoma de que o diagnóstico de Dawson não caducou. Permanecem em aberto, portanto, as questões decisivas que ele propõe: num momento de profunda crise (tanto das crenças que estão na raiz de nossa cultura, como das ideologias do último século), qual pode ser o fundamento de nossa esperança? Qual é o significado desta crise para os cristãos? Como eles podem contribuir para superar o impasse em que nos encontramos?

Dawson oferece pistas: em vez de entrincheirar-se nas formas do passado, cabe aos cristãos dar testemunho sempre novo de sua fé. Cada época da história apresenta novos desafios, aos quais a fé sempre inspirou respostas originais. Mesmo os momentos mais sombrios nunca o impediram, pois, como diz o autor, “se o cristianismo não é adequado a tempos difíceis, os cristãos não têm nenhum direito de falar” (p. 228).

Sem esquecer que o verdadeiro drama decorre no nível da pessoa, o livro conclui com forte apelo, dirigido a cada leitor: “Onde quer que o cristianismo exista, sobrevive uma semente de unidade, um princípio de ordem espiritual que não poderá ser destruído pela guerra, pelo conflito dos interesses econômicos ou pelo fracasso da organização política. Não há dúvidas de que será dito que os cristãos são muito poucos, muito fracos e muito pobres em qualidades intelectuais e espirituais para influenciar o curso da história. Entretanto, o mesmo pode ser dito (...) dos próprios cristãos sob o Império Romano. (...) Assim, a esperança do mundo repousa, em última instância, na existência de um núcleo espiritual de crentes, portadores da semente da unidade. Cada um deles tem a dar uma contribuição especial e única para a vida do todo” (p. 259).