Marcos Zerbini, Julián Carrón e Cleuza Ramos

A política: uma tarefa educativa

Em São Paulo, um grupo de políticos reunidos para falar sobre o bem comum. Após uma manhã de trabalho, a palavra do convidado de honra: padre Julián Carrón, o presidente da Fraternidade de CL. Da Passos de abril
Isabella Alberto

Cleuza e Marco Zerbini são os fundadores da Associação dos Trabalhadores Sem Terra de São Paulo (ATST), um movimento de moradia que já ajudou milhares de pessoas a terem sua casa própria. Após o encontro com CL, em 2003, o trabalho deles ganhou novo sentido e se incrementou ainda mais, tendo inclusive iniciado uma nova Associação, Educar para a Vida, com o objetivo de ajudar as pessoas a ingressarem no ensino superior através de parcerias com universidade particulares.
No domingo, 31 de março, eles reuniram na sede da Associação representantes de 15 cidades do interior do Estado de São Paulo. Estavam presentes prefeitos, vereadores e líderes locais para o 1º Encontro do Programa de Lote Urbanizado – Prolurb. E comemoravam que depois de 19 anos a primeira cidade, Novo Horizonte, conseguiu viabilizar o programa criado no governo do falecido ex-governador paulista, Mario Covas. Alguns representantes chegavam de cidades que são distantes até 6 horas de carro, mas, pelo vínculo de amizade nascido nestes anos, todos pegaram a estrada e foram apoiar a iniciativa. O evento contou com a presença de Julián Carrón, o presidente da Fraternidade de Comunhão e Libertação, que foi convidado para um diálogo com estes políticos sobre o tema do bem comum. A seguir publicamos alguns trechos deste momento.


Marcos Zerbini: Quando nós encontramos o Movimento Comunhão e Libertação foi uma revolução, porque nos fez entender que a gente não era responsável por resolver os problemas das pessoas, mas pelo sim àquilo que Cristo nos pede. Por isso convidamos o padre Carrón aqui hoje, que é o responsável último de CL, e gostaria de começar com uma pergunta. Quem está na vida pública hoje e é sério, sofre muito, porque para construir o bem comum demora muito e às vezes parece que não vale a pena. Nós vivemos no Brasil um momento de muita crise, e muitas vezes a dúvida que vem é: de que adianta eu fazer a minha parte se tem toda essa dificuldade? Muitas vezes eu me sinto prisioneiro de um resultado que não está em minhas mãos. Queria que você nos ajudasse a entender qual é a minha parte, qual é a minha tarefa pessoal, e como muitas vezes isso acaba incidindo um pouco no todo. O que me faz conseguir me manter neste caminho?

Julián Carrón: Uma dificuldade é um desafio que todos nós temos que enfrentar. Como vocês que têm filhos. O que faz hoje uma pessoa querer ter filhos e pensar em sustentá-los com os gastos que isso vai implicar? O que é que nos ajuda a dar-nos gratuitamente aos filhos ao invés de usar o dinheiro, por exemplo, para ter outro estilo de vida, para se divertir, ou viajar, para aumentar o patrimônio? Cada um de nós tem uma experiência elementar: construir uma família, ter filhos, é um bem. A vida é muito diferente do que quando a pessoa pensa só em si mesma. Esta faz uma experiência de vida completamente diferente. A gente pode ver isso até mesmo em países mais desenvolvidos, e não é porque gastam o tempo viajando, ou fazendo poupança, que eles sejam mais contentes. Eu tenho uma amiga que está trabalhando e estudando na Califórnia e ela foi convidada por uma família bastante rica para jantar com eles e os seus quatro filhos. No dia seguinte, quando ela encontrou na universidade o senhor que a tinha convidado, ele lhe disse: “Você vai ter que voltar a jantar na minha casa, porque a forma como você tratava os meus filhos eu nunca consegui viver em toda a minha vida. Eu fiz tudo o que estava ao meu alcance, mas não consigo ficar contente”. Isso ficou na minha memória porque eu pensei: a pessoa pode ter todos os recursos econômicos, mas isso não é suficiente para dar a felicidade nem a ela e nem aos seus filhos.

O Marcos se pergunta: “Por que então eu faço as coisas?”. Essa é uma pergunta humaníssima não só quando nos dedicamos aos filhos, mas também quando nos dedicamos a muitas pessoas, ao povo, a gente que talvez nem conheçamos. Eu sempre penso que a razão que pode manter uma pessoa no trabalho é a relação de amor com a esposa ou o marido. Se a gente não tem algo que preencha a nossa vida, que nos deixa felizes, é difícil que possamos resistir por muito tempo numa dedicação quando não se veem os resultados. Porque o marido ou a mulher encontram no companheiro uma experiência de satisfação, de estar contentes, que pode sustentá-los na dedicação aos filhos que não vão dar nada em troca, uma experiência gratuita. Sem uma experiência assim é muito difícil. Eu entendo, por exemplo, que nós aqui, essa experiência de amizade, pode ser um algo a mais para sustentar a dedicação e o serviço de vocês como foi na experiência da Cleuza e do Marcos quando nos encontraram. A gente não fez o trabalho deles, mas a amizade conosco foi para eles a possibilidade de redescobrir as razões por que vale a pena se dedicar numa tarefa. Chama sempre a nossa atenção o fato de que quando a Cleuza nos encontrou ela estava muito desanimada e queria abandonar o barco.

O que nós fizemos? A gente simplesmente foi amigo. Ela fez um caminho humano e religioso conosco, que lhe restituiu a vontade de junto com o seu marido continuar a se dedicar ao seu movimento de moradia. Porque isolados temos sempre a tentação de abandonar. Ao contrário, se estivermos juntos, compartilhando, trocando ideias, a gente pode manter aceso o fogo de se dedicar aos outros. Sem esta companhia, sem esta amizade, é difícil não cair na tentação de dizer: “Eu já me dediquei demais aos outros, é hora de pensar em mim”. E isso fecha o horizonte da vida. E nos asfixia, porque isso não nos dá a plenitude que a dedicação aos outros pode dar. Se a gente não parte da nossa experiência elementar, de como as coisas funcionam, a gente acaba sucumbindo a uma imagem falsa, que é aquela de dizer: “Ah, eu vou ser mais feliz se eu cuidar mais de mim mesmo do que se eu me dedicar aos outros”, o que é uma falsidade. Enquanto nós sabemos que ficamos mais felizes quanto mais amamos, quando amamos os filhos, os amigos, as pessoas do bairro, as pessoas com quem trabalhamos. É muito melhor do que quando a gente fica olhando os outros como inimigos. Fomos feitos para ter uma relação de amizade com todos.

Então a questão que se coloca é como a gente pode se sustentar uns aos outros nessa relação de amizade. Quando a gente se apaixona, fica tão atraído, tão contente, que acha que aquilo vai se manter. Ao contrário, a gente vê que decai. É um fato, a gente não consegue manter vivo o início. Isto é um realismo que a vida nos ensina todos os dias. Desde que a criança nasce, sai da sua mãe, existe uma curva, que vai crescente, crescente e depois cai. Essa decadência que ocorre na vida acontece também nos relacionamentos com os amigos, no trabalho. Então, a ajuda ao Marcos e a Cleuza foi para partirem deste realismo, de que não damos conta sozinhos, apesar de toda a nossa boa vontade. Nós somos cristãos e encontramos em Cristo todo o ímpeto para manter viva essa chama que nos torna novos. Hoje de manhã, conversando com o Marcos e a Cleuza, fiquei impressionado como no país de vocês a religiosidade faz parte do povo, é como se sem ela o povo não conseguisse viver. Alguns intelectuais e pensadores modernos dizem que a religiosidade deveria deixar de existir porque é algo do passado. Mas percebemos como ela floresce em vários lugares. Então, a pergunta que se deve fazer é: “Que tipo de religiosidade é capaz de manter vivo o fogo sagrado?”.

Encontrar uma forma para a religiosidade poder crescer e ser passada, que não crie barreiras, que não crie intolerância e ajude todos a viver o bem comum é uma tarefa não só política como também religiosa. Isso é possível se a gente vive a experiência religiosa de uma certa forma, que seja para nós um sustento. E se isso não acontecer, tudo vai cair nas mãos do poder, no sentido ruim do termo. Nós somos um movimento religioso, e o fato de podermos apoiar o Marcos e a Cleuza no trabalho deles para continuar a tarefa de forma não fundamentalista nos deixa muito contentes. Vemos que a religião não é deixada só para o uso intimista, para um uso da pessoa, mas vemos todo o potencial de ajuda social dela.



Zerbini: A nossa experiência foi realmente ter encontrado um grupo de pessoas que nos ajudou a olhar para a nossa própria vida, a nossa fé, o nosso próprio caminho. Porque Dom Giussani dizia que quando você participa num grupo, tem sempre alguém que está brilhando, tem sempre alguém que tem uma energia de vida que é muito bonita, e a companhia destas pessoas ajuda a contagiar quem está decaindo. Então, a importância de estar juntos, a importância de ser amigos, é que te sustenta nos momentos de fraqueza, porque você encontra alguém que te dá energia, te dá a mão. Então a nossa experiência com Comunhão e Libertação foi essa. A gente conheceu experiências de trabalho no mundo todo de gente que dava a vida para ajudar as pessoas, e isso faz com que a gente não se sinta sozinhos. E uma outra coisa que acho fundamental é que o Carrón diz que o nosso problema é que não fazemos experiência. Muitas vezes experimentamos as coisas sem olhar e sem julgar o que experimentamos. E quando você começa a julgar o que experimenta, começa a entender o que é adequado ou não para a sua vida. Por exemplo, quais são as pessoas mais felizes que você conhece? As pessoas mais felizes que eu conheço são aquelas que usam a vida para construir a vida dos outros. E eu quero ser feliz como essas pessoas. Se eu constato que a única forma de ser feliz é me doar para construir a vida dos outros, então eu sou obrigado a permanecer neste caminho. Essa é a experiência humana.

Carrón: Por isso a tarefa política é também uma tarefa educativa. Muitas vezes a gente pode confundir quem está nos ajudando ou quem está tirando sarro ou nos usando para chegar aonde quer. Parte da tarefa política também é a educação. Então, encontrar pessoas como vocês pode ajudar a distinguir a diferença e não cair naquela de dizer “político é tudo igual”, mas aprender a diferenciar os tipos diferentes. Um exemplo simples disso é que ninguém precisa fazer curso em Harvard para entender se está saudável ou não, ou para entender se está com dor ou não. Também na vida é assim. A gente é capaz de julgar quando uma pessoa nos ama ou está tirando sarro da gente, mesmo que pareça que ela nos ama. É preciso educar as pessoas a diferenciarem aqueles políticos que ajudam e aqueles outros que usam as pessoas para conseguir seus objetivos de poder. Precisam identificar quais são os sinais. Às vezes as pessoas podem ficar deslumbradas com algumas personalidades que depois não constroem algo de bom para as pessoas. Por isso, se a política não se tornar educativa será difícil ela mudar na direção que todos nós queremos. Isso não afeta só o indivíduo, mas todas as relações concretas políticas que construímos. Isso também pertence à crise que nós estamos vivendo. Antigamente havia certezas que eram de todos, agora nós temos dificuldades de reconhecer certezas em comum, como compartilhar a vida, como construir a família, como educar os filhos, como fazer o bem comum. Somos chamados a começar a construção colocando o cimento que no passado existia e que hoje não existe mais. Sem um esforço educativo as pessoas se perdem e se confundem. Ao mesmo tempo em que nós construímos algo, temos que ajudar as pessoas a reconhecerem o bem. Nós estamos num momento novo, não dá mais para esperar. Eu vejo isso na educação. Se houvesse 25 garotos com vontade de aprender matemática, nós poderíamos encontrar 1000 professores. O problema é que não há 25 garotos interessados.

A primeira coisa, então, é despertar o desejo de aprender matemática. Sem isso a gente pode até ter as classes cheias com os garotos esquentando as cadeiras, mas sem ter despertado o interesse. Eu vejo que vocês querem dar algo para as pessoas, mas não podem considerar óbvio o despertar do interesse delas. Por isso, em qualquer atividade – eu como sacerdote, vocês como políticos, outros como professores – não podemos fazer o nosso trabalho hoje sem nos darmos conta de que estamos num momento novo, e este momento novo é caracterizado pelo fato de que precisamos antes despertar o interesse do outro. A crise chegou trazendo uma apatia e a gente tem que começar despertando o eu do outro, o interesse do outro. O problema não é que sejam burros por não quererem estudar, é que nasça neles o interesse para se colocar em caminho. Por isso temos que nos ajudar a entender o que está acontecendo na sociedade para fazer algo que corresponda à situação que estamos vivendo, às necessidades que as pessoas com quem vivemos têm, aquelas com quem conversamos. No ano passado eu fui ao Paraguai e encontrei um professor de música que dá aulas num bairro de periferia, em Assunção. Este bairro é muito pobre e os alunos não têm dinheiro para comprar os instrumentos. E ele dizia que precisa de 5 minutos para convencer estes meninos a se interessarem pela música. E eles constroem um violino a partir de dejetos que encontram no lixo, colocam só uma corda e depois o professor faz com que eles comecem a tocar. Depois de 5 minutos os insere numa orquestra, e os conquista. E depois disso eles estão com toda disposição para aprender música para depois tocar numa orquestra. É preciso primeiro despertar o interesse para depois trazer todas as competências técnicas. Uma amizade que ajude a entender o que está acontecendo na sociedade e que ajude a encontrar os meios para responder é a melhor resposta para aquilo que foi chamado “a urgência educativa”.

(Texto inicialmente publicado na Revista Passos, abril/2019)