Clarice. 610 palavras para ela
Nesta quinta-feira, 10, foi o centenário de uma das maiores escritoras brasileiras. Para comemorar a data, trazemos aqui a crônica de uma amiga nossa em homenagem a elaCem anos. Como assim? Escrever é tão natural, acontece tão afetivamente, que pensar uma frase é quase impossível. A frase nasce. Nasce como uma flor desabrochando onde quer. Na relva, na calçada, na fenda da parede. É assim: algo gritando dentro. E explode. De repente.
Só escrevo quando quero*; por isso não quero ser profissional!
Escrever é algo imanente em mim. Surge de um olhar, ou de uma gota de orvalho. De uma criança que chora na casa ao lado. Por isso, é impossível uma encomenda.
Um dia, foi o homem cego mascando chiclete. Outro foi a lua que movia as estrelas até tocar a alma de Macabéa. Quando o coração é selvagem, a pausa deixa em suspenso o pensamento: ora estranho, ora a rir de dobrar. Difícil? Não... inquietante!
No dia em que o coelho saiu da gaiola, o mistério era saber como ele pensava. Será que foi ele quem matou os peixes? Não! Foi a mulher... Ora, ora, ser alguém assim não é mesmo fácil. Escrever é uma vocação: basta a vida que se vive e se derrama por todos os nossos lados; também faz germinar o que há de mais oculto em nós.
Livre! A liberdade nunca pode ser domada; pois a liberdade vive perto do coração. É água viva. A eternidade se toca quando se assume a liberdade como início, meio e fim. Amor. Liberdade e amor se tocam na existência a que só o divino pode dar significado. O significado do amor é ser livre. Só quem é livre ama e sabe amar. Quem ama e não deixa livre, pensa que ama, mas, na verdade, é prisioneiro das próprias ideias. Quem ama contempla. E quem contempla, quem sabe o que é contemplar deixa o outro ser.
Por isso, não sou profissional*. Não escrevo quando querem; escrevo porque as palavras pulam da minha boca e caem no papel. É difícil, hoje, nesse tempo digital... porque o tempo não espera a necessidade de ter dedos ágeis se completar. Os dedos não sabem dançar no balanço das letras que vão se juntando em palavras, em expressões, em frases, em parágrafos... tudo isso é pouco para tanta imaginação.
Imaginação? Não! É mais! É inspiração! De onde vem a inspiração? Ela não vem... ela acontece.
O acontecimento é algo que independe totalmente de qualquer coisa. Simplesmente acontece: existir dói. Mas ninguém quer que essa dor acabe. Nem eu...
Hiatos*... a poesia que explode no silêncio me salva de mim mesma. Mineirinho morreu com treze balas. Uma não bastava? A ausência de resposta para essa pergunta me faz escrever, sem esperança de encontrar a resposta. Quem escreve não quer alterar a vida; quer apenas deixar que o que grita dentro do peito escorra pelos poros.
Não posso decidir quando escrever nem quando não escrever. Mas amar, eu posso!* Então decidi amar por G.H. Quando aquela barata apareceu no quarto da empregada, não pude conter o ímpeto de comê-la. Hoje é quinta-feira de uma semana santa sem paixão. Nada nunca foi igual, nem será. É preciso aprender a ouvir o grito do silêncio que inunda as almas febris. A febre não é sinal de doença, mas de vida. Vida que vibra na insensatez do instante. Ai, dor de amar, tal e qual a dor de existir. Por que morrer se há alguém que já morreu por mim?
Fazer cem anos depois de estar morta e não ter sido esquecida é sinal de que escrever, de fato, me salvou. Assim serei eterna, como aquele instante do tempo em que, por amor, fui tirada do nada. Vivi uma vida de pó, mas fui resgatada pela palavra que me tornou eterna.
*Palavras de Clarice
**Professora, revisora, psicopedagoga e escritora