O Hobbit. Guia de leitura

Este guia é um instrumento criado para acompanhar a leitura dos assinantes da Entrepassos. Para que o livro seja um recurso para julgar as coisas que fazemos no dia a dia. É como o pai que ensina ao filho como fazer o caminho
Luana Rufino

“Numa toca no chão vivia um hobbit. Não uma toca nojenta, suja, úmida, cheia de pontas de minhocas e um cheiro de limo, nem tampouco uma toca seca, vazia, arenosa, sem nenhum lugar onde se sentar ou onde comer: era uma toca de hobbit, e isso significa conforto.”

Essa primeira frase emblemática e bastante difundida do livro O Hobbit já nos indica características importantes de seu personagem principal: Bilbo Bolseiro, que, assim como todos os hobbits, vivia literalmente em uma toca. Já nesse início, J. R. R. Tolkien traz a natureza mundana e profundamente apegada à terra, ao que é material, ao que é conhecido e ao que é terreno dos hobbits. O fato de viverem em tocas e estarem muito orgulhosos disso, sem nenhuma intenção e/ou a abertura ao desconhecido, apresenta um aspecto da pequenez desse povo, o qual era pequeno não apenas no tamanho, mas também em seus desejos.

Com isso, Tolkien, apesar de situar sua história em um passado imaginário, traz no Hobbit a figura do homem moderno, que está totalmente satisfeito dentro de sua própria toca, desfrutando do conforto e comodidade de seu lar, de tudo o que ele sabe e que é conhecido em seu pequeno mundo. Os hobbits deveriam ser, portanto, aos olhos de todos, os últimos a participarem de uma grande missão ou de aventuras, ou de encontros inusitados. Isso porque não são somente frágeis e limitados, pequenos fisicamente como uma criança e aparentemente indefesos, mas também são fechados em si, arrogantes, autossuficientes e até mesquinhos, mergulhados em suas pequenas certezas.

No entanto, é justamente nesse povo que o mago Gandalf (o qual Tolkien descreve numa de suas cartas como “a personificação da graça”) escolhe o principal herói da primeira grande missão para salvar a Terra Média descrita no livro O Hobbit. Ao ser questionado sobre a escolha dos hobbits, Gandalf simplesmente responde: “Saruman acredita que apenas um grande poder pode manter o mal sob controle; mas não é o que eu descobri. Descobri que são as pequenas coisas, as tarefas diárias, de pessoas comuns, que mantém o mal afastado; simples ações de bondade e amor”. Gandalf, como ele mesmo diz, é surpreendido com a grandeza misteriosa que se esconde na mediocridade dos povos medianos. O mago é aquele que conhece os hobbits enquanto todos os outros sábios os ignoram. Os olhos dos poderosos estão voltados aos grandes, mas Gandalf inova mostrando a potência criativa de um bem que corrige o mal gerando; não suprimindo o mal com poder, mas despertando em alguns, inclusive e especialmente nos menores, uma provocação que é capaz de mudar os rumos da história.

Ilustração de @jordanbrannenmedia.art

Inicia-se, com Gandalf, a revelação de um método em que a supremacia de um bem maior é alcançada a partir do despertar de alguns poucos (e aparentemente irrelevantes) personagens, pautada totalmente na liberdade deles, bem diferente de uma violência através de um plano de luta por hegemonia com os mais fortes heróis ou seres com poderes especiais. Não! Gandalf começa com os pequenos, com Bilbo Bolseiro, que vivia confortável e tranquilamente no Condado e nunca se atrasava para as refeições.
É nesse contexto que Tolkien descreve a dinâmica do Encontro, em um diálogo divertido entre Bilbo e Gandalf logo no primeiro capítulo do livro, em que Gandalf o convida para uma Aventura inesperada. A primeira reação de Bilbo é imediata: “Somos gente simples e quieta e não queremos saber de aventuras. Coisas desagradáveis, perturbadoras e desconfortáveis! Fazem o sujeito se atrasar para o jantar! Não consigo imaginar o que alguém vê nelas”. Gandalf não se detém à primeira negativa de Bilbo, que, em seguida, se vê compelido a falar pela segunda vez: “Não queremos nenhuma aventura por aqui, obrigado! Pode tentar do outro lado d’A Colina”. Instigado pela vontade do hobbit de se ver livre dessa conversa incômoda, Gandalf diz: “De fato, irei mais longe e vou incluí-lo nessa aventura. Muito divertida para mim, muito boa para você”. Ao passo que Bilbo responde pela terceira vez: “Desculpe. Não quero aventura nenhuma, obrigado!” e volta rapidamente para sua casa e tranca a sua porta.

Contudo, ao entardecer do mesmo dia, o anão Dwalin bate à porta de Bilbo e entra em sua casa. Bilbo, ainda surpreso com a sua inesperada companhia, escuta novamente a campainha tocar. Ao abrir a porta de novo, ele se depara com outro anão mais velho chamado Balin, que também entra em sua casa. É dessa forma que, um a um, aqueles anões estranhos vão entrando em sua toca enquanto bebem e comem, gastando todos os alimentos de sua grande despensa, com Gandalf rindo e apreciando a confusão na casa do hobbit. É, portanto, também aos poucos, a cada anão, que Bilbo abre a pequena porta do seu coração e se deixa fascinar por algo que ele não conhecia. Ao mesmo tempo, os anões são escandalosos, grosseiros, cantam, comem e bebem sem parar. O lado acomodado – Bolseiro por pai – de Bilbo se escandaliza e espera que o encontro termine em breve. Mas o seu lado Tûk por mãe, que parecia estar adormecido, de certa forma se encanta com aquele espetáculo quando Thorin, líder dos anões, canta uma música melancólica que é acompanhada por todos eles: “Enquanto cantavam, o hobbit sentia o amor pelas coisas belas e feitas por mão e por engenho e por magia atiçando-se em suas entranhas, um amor feroz e ciumento, o desejo do coração dos anões. Então, alguma coisa típica dos Tûks despertou dentro de Bilbo, e ele desejou partir e ver as grandes montanhas”.

É nesse momento que se desperta um desejo desconhecido em Bilbo, uma consciência que ele não sabia que tinha, mas que o impele (mesmo ele não entendendo muito bem por quê) a aceitar a participar da “Companhia de Thorin”. Essa companhia peculiar propõe a Bilbo encarar uma missão ousada, cujo objetivo é recuperar a Montanha e lar dos anões das garras do dragão Smaug. Assim, o despertar do desejo em Bilbo é o despertar do caminho, que o põe numa aventura perigosa, no qual o hobbit sente uma atração irresistível que o faz sair da sua pequena toca abandonando todas as suas manias, seus confortos e suas certezas.

Outro ensinamento extraordinariamente moderno de Tolkien que podemos aprender no livro O Hobbit é a forma como personagens profundamente diferentes, fisicamente, culturalmente e com ideais totalmente distintos são capazes de se unir em busca de um bem comum. Essa união inusitada entre hobbits, anões, homens e elfos, que ultrapassa a rivalidade intensa entre esses povos (como, por exemplo, a inimizade histórica entre anões e elfos), mostra que, entre brigas, traições e fracassos, existe um bem que se desvela em qualquer um sem distinção. Em todo ser que respira, de diferentes povos, pode surgir qualquer coisa que o faça criar algo de belo no mundo. E o desencadear da história revela não só uma potência geradora em cada personagem, mas a integração dos vários esforços e personalidades individuais em um desígnio maior e único capaz de salvar a Terra Média, de um modo tão impossível e inimaginável que é aparentemente aleatório.

Por fim, para evitar spoilers e para que você aprecie a beleza desse livro, eu te convido, leitor, a conhecer agora a história de Bilbo, o qual inicia atrapalhadamente seu caminho: uma jornada totalmente inesperada e cheia de aventuras!

“Na literatura contemporânea, Tolkien retrata em Bilbo e Frodo a imagem do homem que é chamado a caminhar […] O homem ‘a caminhar’ tem dentro de si a dimensão da Esperança: aprofunda-se na Esperança”, como afirmou Papa Francisco, até então Cardeal Bergoglio, na homilia da missa de Páscoa em 2008.

Sobre o autor:
John Ronald Reuel Tolkien foi escritor e professor britânico na Universidade de Oxford na Inglaterra. Jonh nasceu na África do Sul em 1892 e, após a morte de seu pai, foi levado para a Inglaterra por sua mãe junto com seu irmão. Tolkien é criado com uma profunda admiração por sua mãe Mabel, a qual ele inclusive considera mártir, após os sofrimentos que passou em sua conversão ao catolicismo. Sua mãe se converte ao catolicismo graças ao encontro , não exclusivamente, mas com grande apoio do Oratório de Birmingham, fundado pelo santo cardeal John Henry Newman, em meados do século XIX. Após o falecimento de sua mãe, Tolkien e seu irmão, órfãos, foram criados no Oratório de Birmingham. Seu pai de criação se tornou o padre Francis Morgan, pupilo e um dos alunos preferidos do Cardeal Newman. Passando por duas grandes guerras (Primeira e Segunda Guerra Mundial), a primeira para a qual chegou a ser convocado, Tolkien sobreviveu à Batalha de Somme, na qual morreram 500 mil pessoas. No período da Segunda Guerra Mundial, em um mundo dividido e polarizado entre Hitler e Stálin, Tolkien aprofunda sua amizade com o também professor C. S. Lewis, que foi um dos primeiros a conhecer e incentivar a obra O Senhor dos Anéis, também escrita por Tolkien.
Com sua amada esposa Edith Bratt, convertida ao catolicismo por Tolkien, ele teve quatro filhos: John Francis, Michael Hilary, Christopher John e Priscilla Anne. O livro O Hobbit surgiu a partir de pequenas histórias que Tolkien contava aos seus filhos, os quais criticavam e constantemente davam ideias aos personagens. Assim, Tolkien dedica essa sua obra aos filhos, os seus pequenos “hobbits” dentro de sua família.

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