
Construindo pontes de esperança e amizade
Em São Paulo, empresários, acadêmicos e lideranças debateram desafios geracionais, inteligência artificial e a construção de um futuro humano e solidário, reafirmando a força da fé e da amizade operativa no cotidiano profissionalQual o sentido do trabalho no mundo contemporâneo? Como as gerações podem se encontrar e beneficiar-se mutuamente? Como permanecer humano diante da tecnologia? Como construir esperança em meio às incertezas do nosso tempo?
Com o tema “Caminhar Juntos: Desafios e Esperança para um Novo Tempo”, a 12ª edição do Fórum da CdO do Brasil – que este ano incorporou também o Fórum Latino-Americano da organização – se propôs a refletir sobre essas e outras perguntas desafiadoras.
Realizado em São Paulo entre os dias 24 e 26 de outubro, o encontro reuniu 230 participantes presenciais de oito países e contou ainda com o acompanhamento remoto de 16 cidades. Fruto do trabalho conjunto entre representantes da CdO do Brasil, Chile, Itália e de experiências em países como Argentina, Colômbia, Paraguai, Peru, Venezuela e México, o Fórum foi rico em ideias e juízos acerca de temas contemporâneos.
Um encontro para viver a amizade e a missão
Mais do que a descrição dos debates, destaca-se aqui o que foi compartilhado na mesa de encerramento do Fórum, espaço onde se revelaram pontos de síntese do encontro. Fabiano Molina, presidente da CdO Brasil, salientou o ambiente internacional e intercultural do Fórum, onde “havia um só povo, unido pelo ponto central da construção: Cristo encarnado em uma companhia de amigos, com o desejo de, juntos, edificar o Reino de Deus”. Destacou também a riqueza do debate: “Houve contraposição de ideias e pontos de vista diferentes, sempre a serviço da construção; mesmo quando discordavam, havia uma proposta clara e um sentido de missão”.
Andrea Dellabianca, presidente internacional da CdO, enfatizou: “O que mais me impressionou foi o clima de amizade real e fraternidade entre os participantes, até mesmo entre aqueles que se encontravam pela primeira vez”. Para ele, o sentimento de “estar em casa” foi proporcionado pela seriedade e intensidade com que se discutiram temas fundamentais, como a transição geracional e os desafios da inteligência artificial.
Outro aspecto importante foi como as empresas e obras ligadas à CdO, bem como a própria organização, podem preservar sua origem. Ettore Pezzuto, responsável da Comissão Internacional do Movimento Comunhão e Libertação, frisou: “Nossas obras, sem manter o vínculo com a origem, perderiam a originalidade que as distingue e se tornariam apenas mais uma entre tantas organizações na sociedade”. Ele ressalta que, mesmo com o passar dos anos e o crescimento, a obra jamais pode se desassociar de suas raízes. “Mas nessa edição do Fórum vi a confirmação de que o carisma continua vivo e gerador de fruto”, acrescentou. Dellabianca complementou: “Retomar a discussão sobre a origem não nos isola; ao contrário, é a única forma de apresentar algo que realmente importa ao mundo”. Esse vínculo exige lealdade e disposição para submeter iniciativas ao espaço educativo do Movimento Comunhão e Libertação, mesmo quando isso requer uma “mortificação”, no sentido de correção, como ensinava Luigi Giussani: “Gera quem é gerado. O crescimento e a fecundidade derivam da fidelidade à pertença”.
Entre os métodos que a CdO latino-americana deve considerar nas circunstâncias atuais, Dellabianca argumentou ser essencial “arriscar o caminho e a construção, certos de que os esforços não são em vão”. A liberdade para arriscar surge da certeza de já termos encontrado Aquele que prometeu o cêntuplo, tornando as pessoas livres em relação ao resultado, pois o resultado já está “em nossas mãos”.
Sobre o sentido do trabalho, Dellabianca identificou a emergência de uma nova inquietação, que supera o paradigma centrado apenas em produtividade. Hoje, a pergunta central é: “O trabalho tem relação com a satisfação da minha vida? Com meu crescimento?” Ettore Pezzuto reforçou, com base em Giussani: “O trabalho é a manipulação da realidade segundo um ideal; implica ação prática, mas especialmente ser sustentado por um ideal que dá sentido à vida”. Ou seja, não é apenas transformar a matéria; é fazer isso orientado por algo que transcende a mera produção. Pezzuto também destacou a importância da fé como fonte de novos julgamentos e ações que transformam a sociedade. Citando o Cardeal Kevin Joseph Farrel, prefeito do Dicastério para os Leigos, a Família e a Vida, pontuou: “A Igreja nos convida a viver esse novo agir, como sal no ambiente de trabalho”. Esse agir novo impede que a experiência cristã seja reduzida a algo privado ou interior.
Nessa mesma direção, dom Odilo Scherer, cardeal arcebispo de São Paulo, afirmou em sua intervenção no domingo de manhã: “A missão da Companhia das Obras é uma consequência direta da fé, que deve se traduzir em iniciativas concretas para o benefício e dignidade de toda a vida social. Cada esforço é vital, pois nenhuma ação é pequena demais. Cada ação, por menor que seja, conta para a plenitude da esperança”.
Temas em debate
Ao longo de três dias intensos, o Fórum promoveu debates aprofundados em torno de questões que desafiam o mundo do trabalho contemporâneo.
Mudança geracional
O primeiro painel destacou a convivência inédita entre diferentes gerações nos ambientes de trabalho. Entre os participantes estavam Stefano Gheno (Universidade Católica de Milão e CdO Obras Sociais), Luca Marzola (empresário italiano), Giovanna Ottoni (Associação Janela de Encontros), Benedetto Lonato (Universidade de Gênova) e Jorge Jubilato (executivo de RH).
Para Benedetto Lonato, “a diversidade não é opção. Não sou eu quem decide se devo gerir ou não contextos diversos: eles existem e ponto.” Da diversidade, nasce a “alquimia de experiências”, que possibilita inovar e se deixar impactar por visões e trajetórias distintas. Jorge Jubilato reforçou que gerações diferentes não competem, mas se complementam: “Os jovens trazem energia e visão; os mais velhos, experiência e discernimento”.
Giovanna Ottoni aportou a perspectiva dos jovens: “Nós nascemos para uma vida em comunidade. Precisamos de uma companhia concreta que nos apoie na vivência da realidade, de uma autoridade que acompanhe, que ofereça uma experiência e a sustenta.” Porém, advertiu que a busca por autonomia pode ser “potencialmente devastadora”: “O que a pedagogia contemporânea chama de ‘autonomia’ frequentemente é abandono. Abandona os jovens numa ‘liberdade’ que é, na verdade, orfandade”.
Outra chave do debate foi o sentido do trabalho para os jovens. Stefano Gheno destacou que não concorda com a ideia de que os jovens perderam esse sentido. “Acho simplesmente que em todas as gerações havia quem conhecia o sentido e quem não conhecia, mas havia outra coisa chamada dever, que substituía o sentido.” Para Luca Marzola, o líder tem o papel de ajudar as pessoas a reconhecer o sentido e provocar perguntas, ferramenta essencial para redescobrir o significado do trabalho: “Sem as perguntas, o trabalho se resume a regras – e as regras são obedecidas por medo ou dever”.
Inteligência Artificial
O segundo painel trouxe à tona um assunto que domina a atualidade: os efeitos humanos da revolução da inteligência artificial. Carlos Crestana, líder de produto em plataforma de IA na Disney, e Emanuele Frontoni, professor de Ciência da Computação em Macerata, defenderam uma avaliação equilibrada, evitando a demonização ou a exaltação desligada da realidade.
Frontoni foi contundente: “Não devemos humanizar a inteligência artificial. A IA é um instrumento. Isso é libertador: não é entidade com a qual negociamos, nem rival que ameaça nossa identidade.” Ele ressaltou que o julgamento, sobre valor e utilidade, é exclusivamente humano: “Ele é o especialista do domínio. Ele é quem deverá julgar se a inteligência artificial está fazendo algo útil ou não”.
Crestana lançou um alerta sobre o risco do sedentarismo intelectual: delegar todo pensamento crítico à máquina pode atrofiar nossa capacidade de julgamento. “Isso não é preocupação romântica com a tecnologia, mas questão antropológica: o ser humano se constitui através do exercício. Se não pensamos, deixamos de ser humanos naquele sentido específico.” Ele destacou que a experiência dos mais velhos é capaz de perceber oportunidades que os jovens não veem, e que a IA pode ampliar essas capacidades – desde que continue sendo um instrumento e o julgamento humano seja mantido.
Construção em tempos de incerteza
O último painel focou no desafio urgente da América Latina: como agir com esperança num contexto repleto de incertezas. Gianni Zandonai (CdO Chile) compartilhou que é possível continuar construindo mesmo frente a instabilidades políticas, violência e ao retrocesso do multilateralismo. “A certeza coincide com um lugar com rostos que estão ali para sustentar você nessa caminhada com o medo, com o limite e também com a esperança. Não é eliminar a incerteza, mas sustentar-se em relações que permitem atravessá-la.” Ele acrescentou que, diante de crises financeiras ou existenciais, “a verdadeira salvação não está no dinheiro, mas na existência de um lugar e de rostos que oferecem apoio seguro”.
Zandonai questionou: “Quantas vezes o empreendedor está só com seus problemas?” Ressaltou que o grande desafio é redescobrir a utilidade intrínseca da pessoa, independentemente do sucesso externo, e que essa utilidade só se revela no encontro e nas relações.
Fabrizio Pellicelli (Gerente Regional da AVSI na América Latina) acrescentou: “Para responder ao contexto crítico, as organizações precisam adotar um realismo que não se limite a ver a falta, mas julgue a realidade buscando o positivo de onde recomeçar, mesmo nas situações mais difíceis.” Ele completou: “A educação do Movimento Comunhão e Libertação nos diz que a realidade é positiva, mesmo em uma situação de extrema dificuldade como a favela, sempre existe algo positivo e você precisa começar a partir disso”.
Além disso, destacou-se a importância de que a ação operacional seja rigorosamente coerente com a missão e identidade de valores, e que agir isoladamente deve ser evitado em favor da responsabilidade e companhia interna: “Precisamos sempre avaliar se o que fazemos está totalmente coerente com o ideal, com nossa missão, nossa identidade, nossos valores... é fundamental não estar só”.
Para encerrar o painel, Enrico Misasi (Secretário da Casa Civil de São Paulo) lembrou que a incerteza é parte estrutural da vida humana. Alertou que seria equivocado apoiar a plenitude do sentido da vida ou mesmo de empresas apenas em resultados futuros incertos. Frisou que “o fundamento sólido sobre o qual construir significado não deve ser o sucesso esperado, mas sim a relação e o encontro com o outro”. Para enfrentar a irreversibilidade da vida, é necessário criar espaços, instituições e companhias baseadas em promessas de fidelidade recíproca, como a CdO representa.
A Companhia das Obras existe não como resposta para todos os problemas, mas como um espaço onde as pessoas não enfrentam sozinhas suas incertezas, oferecendo relações que sustentam e alimentam a esperança.
Conclusão
Além dos painéis destacados, o Fórum também contou com mesas temáticas que ocorreram simultaneamente, abordando temas essenciais como obras educativas, internacionalização de empresas e ações sociais.
Complementando a programação, chamou atenção a exposição da mostra “Não se pode morrer por um dólar”, que conta a história Amadeo Peter Giannini (1870-1949), bancário ítalo-americano e fundador do Bank of Italy — que, posteriormente, se transformou no Bank of America. Giannini revolucionou o setor bancário nos Estados Unidos ao assumir um compromisso social baseado na confiança mútua, um legado que ecoa até hoje.
A experiência do Fórum reforçou a necessidade crucial de cultivar espaços onde a colaboração sincera e o compromisso coletivo possam florescer. São estes ambientes que estimulam uma cultura de confiança e apoio mútuo, capazes de transformar desafios atuais em oportunidades para construir um futuro mais humano e justo na América Latina.