© Guto Muniz/Foco in cena

Adélia Prado: Uma poética do testemunho

Hoje a escritora mineira, vencedora dos prêmios Machado de Assis e Camões, completa 90 anos. Para lembrar a amizade com ela começada há vários anos, trazemos de volta um artigo da Passos de set/out 2024
André Tourinho

Bem como músicas se elaboram por meio de melodia, ritmo e harmonia, segundo Erza Pound, um dos maiores críticos literários do século XX, o poema é composto por três elementos: imagem, som e ideia. Nos versos de Adélia Prado, porém, um quarto fator salta: a experiência; enquanto a maioria dos poetas busca a reinvenção do real – nas palavras de Ferreira Gullar: “[...] a poesia é, para mim, a própria invenção da vida” –, a poeta de Divinópolis/MG se distancia dessa colocação ao imprimir nas palavras um instante, uma cena, uma sensação, certo pequeno grande acontecimento, ao qual alguns chamam de epifania, quando objeto ou fato inicialmente ordinário se rompe com uma visão de transcendência, ou seja, a realidade segue idêntica, porém transformada ao olhar do perceptor com uma redescoberta – no Movimento, esse mesmo fenômeno é nomeado de maravilhamento.

Nesse sentido, vida e obra não se desvinculam na mineira, cada poema é o registro de uma circunstância, e tal envolvimento pessoal em sua escrita também se demonstra no nível de comoção ao realizar leituras públicas, como se pode conferir com variedade pela Internet. O embargo na voz, os olhos às beiras de inundar, imersos na folha de papel diante de si, como se houvesse a recomposição do que descreve. Entre os grandes nomes do modernismo, Adélia apresenta um testemunho de fé que incide sobre a realidade, não se poupando em relatar a precariedade de ser existente: ciúmes, dor do luto, esperança, desespero, raiva, paixão, desejo, insuficiência, tudo atravessado por um reflexo de Cristo de maneira que o leitor reconheça, no testemunho da poeta, uma fé visceral e genuína, livre de moralismos por abarcar a fragilidade de si sem filtros, algo em busca de inteireza ainda assim.

Em sintonia com a recente consagração da produção literária de Adélia Prado por meio dos prêmios Machado de Assis, concedido pela Academia Brasileira de Letras a autores pelo conjunto de obras com excelência, e Camões, o maior de toda a língua portuguesa, o Papa Francisco veiculou no mês de julho deste ano uma carta em que discorre sobre o papel em especial da literatura na formação. Junto a isso, o lembrete: a cultura é alimento à alma; sem ela, o homem pode contar com moradia, saúde, alimentação renda, e ainda se ver num absoluto vazio. A cultura, pois, caracteriza o ser humano, trazendo-lhe DNA próprio em tempos de globalização. Ler Adélia Prado é viajar ao interior de Minas, sentir o sabor de iguarias no tacho e antes aquecidas à lenha, ouvir outro dialeto no mesmo idioma, notar o que existe de essencial em realidades distantes – não por acaso os escritos da poeta já se encontram traduzidos em línguas estrangeiras. Logo pulsa nos versos algo de universal, que evoca uma experiência de quem lê, assim ocorre o espelhamento poeta-leitor; com segurança, podemos estabelecer que cada poema de Adélia busca encapsular aquilo que Luigi Giussani cunhou de experiência elementar.

A correspondência entre Adélia e o Movimento

No livro Experiência elementar em Psicologia: aprendendo a reconhecer, Miguel Mahfoud, professor do Departamento de Psicologia da Fafich (UFMG), sintetiza a experiência elementar como: “[..] o ímpeto original que está na base de todo gesto ou posicionamento humano”. Em conversa para o presente artigo, o professor conta a riqueza de cultivar uma relação de amizade com Prado; segundo ele, tudo começou por meio do elo entre a poeta e a também professora Marina Massimi. A partir dessa ponte, Miguel teve contato com Adélia em um evento clandestino sobre ciência e religião, em Belo Horizonte, numa época em que essas duas eram julgadas como incompatíveis pela “alta cúpula” acadêmica, um tabu mesmo no contexto da PUC-Minas. Disso se derivou outros encontros, o livro “Diante do Mistério”, com um capítulo da escritora, e sobretudo um vínculo afetivo – visitando, inclusive, o seu lar junto a mais amigos do Movimento. Houve momentos de contato direto de Adélia com escritos de Giussani, com ela apresentando sempre uma afinidade de olhares; em específico, Miguel Mahfoud conta ter introduzido esta seguinte fala do sacerdote italiano:

“As duas graças que o Senhor doa são:
a tristeza e o cansaço.
A tristeza porque me obriga à memória
E o cansaço porque me obriga a dar as razões do porquê faço as coisas.
Faz ó Deus, que uma positividade total guie o meu ânimo,
em qualquer condição eu me encontre,
qualquer remorso eu tenha,
qualquer injustiça sinta pesar sobre mim,
qualquer escuridão me circunde,
qualquer inimizade, qualquer morte me assalte,
porque Tu que fizestes todos os seres para o bem,
Tu és a hipótese positiva sobre tudo aquilo que eu vivo.”


De acordo com Miguel, a reação por parte de Adélia foi dizer: “Isso me salva!” A correspondência entre a poeta mineira e o filósofo lombardo é, portanto, uma factualidade.

O cotidiano

Outro traço em Adélia, também em comum com a visão de Giussani, é a valorização do cotidiano: “O grande tema é o real, o real; o real é o grande tema. E onde é que nós temos o real? É na cena cotidiana. Todo mundo só tem o cotidiano e não tem outra coisa”, diz ela. Ademais, Prado se une à percepção de uma poética testemunhal ao ter respondido à revista Poesia Sempre, da Biblioteca Nacional, se tinha algum leitor em mente quando escrevia: “Não, porque se o poeta pensa no leitor quando se senta para escrever já começa errado. Você tem um único espectador, que é Deus. Ele é a minha única plateia. Então, você faz o que tem que ser feito. Não pode tirar e botar nada em função de ninguém”, recordando o verso do poeta espanhol Antonio Machado: “Quien habla solo espera hablar a Dios un día”.

Em suma, a literatura exemplifica com vivacidade os possíveis cenários inerentes à condição humana – poesia não é ficção, mas mesmo um romance é capaz de nos ensinar mais sobre a vida do que livros de autoajuda, uma vez que, ainda que fora do factual, ilustra potenciais realidades; por isso, quem abordar com seriedade autores comprometidos como Adélia extrairá para si um inevitável amadurecimento, ao acoplar ao seu repertório o que o(a) escritor(a) precisou vivenciar ou idealizar por meio do exercício imaginativo – que também transpira à luz do real. O poeta não quer o seu voto nem demanda que compre ingressos a um show; nele, o desejo pulsante e maior é dialogar com você a partir de uma nova atenção – nada mais.

Por essa graça, a poesia atenta à lógica temporal, transgride-a, servindo como acesso ao coração de diferentes tempos de modo que nós, já na segunda década do século XXI, experimentemos com surpresa uma identificação com os poemas dos mais variados períodos ao longo do livro O senso religioso, o qual vem sendo trabalhado nos encontros de Comunhão e Libertação de todo o mundo. Sabiamente, Giussani utiliza poetas como a voz dos homens em máxima potência e, a partir disso, tece caminhos a esses cenários interiores registrados por figuras de até antes de Cristo. Com isso, floresce a noção de que os nossos dramas não se restringem ao agora, apenas alteram as roupagens de época em época, e que esta aventurança de viver não precisa ser calcada sozinho, mas junto aos vivos e aos mortos, pois cada poema guarda um profundo aprendizado a quem se permitir nele mergulhar, seja hoje, seja no próximo milênio.

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