Basílica de Aparecida (Foto de Kika Antunes)

Peregrinação. «A metáfora perfeita da vida»

Foi uma caminhada noturna à Aparecida do Norte em outubro passado. Não sendo mais jovens, ao final do exigente percurso, entre agradecidos e surpresos com a própria façanha, três amigos desejaram compartilhar a experiência única que cada um viveu

Splacht, splacht, splacht! Flap, flap, flap! Auuu! Au, au,au! Muuuu! Os sons das passadas sobre as pedras da estrada, das bandeirolas fustigadas pelo vento, cães e gado. Cheiros de pasto, capim-gordura e bosta de vaca. No silêncio que me coloquei era só isso que eu ouvia e sentia sob um céu absolutamente maravilhoso, estrelado como não estamos acostumados e a lua, quase cheia que acendia em mim uma alegria inusitada. Lá estava eu, arrastando meus sessenta e tantos anos, dois stents, uma tela de tungstênio no abdômen e 20 cm a menos de intestino. Não tenho a menor dificuldade de ficar de boca fechada e obedecer ao pedido de silêncio, mas aquietar o coração já exige uma dose extra de empenho. As lanternas curiosas de vez em quando iluminavam árvores fantasmagóricas e outras vezes se refletiam na cruz que docemente nos lembrava para onde deveríamos olhar. Essa caminhada é a metáfora perfeita da vida. Impossível não se lembrar do povo atrás de Moisés e de dar-se conta de que quanto mais distante da cruz mais espaço para murmurações e leviandade. Assim como eu, todo mundo foi testado nos seus limites de respeito ao outro, de obediência e cansaço. Eu estava morrendo de medo de terminar a caminhada com os pés queimando de bolhas como no ano passado. Poderia não ter vindo, mas o desejo era tão forte que fui pesquisar com amigos como se faz para evitar as bolhas nas longas caminhadas. A cada parada que eu tinha a chance de examinar os pés e constatar que eles estavam intactos. Cansados, mas inteiros. Aumentava a minha gratidão por estar ali, participando de um gesto tão bonito sem sofrer os efeitos colaterais da idade e da inexperiência. No trecho de Dom Giussani falando sobre a tenacidade do caminho, ele coloca de modo peremptório: essa tenacidade não pode existir em nós a não ser na condição da convivência, é uma convivência que dá essa tenacidade. Pois bem, também aí percebo a graça da companhia. Fiquei contente de reencontrar amigos da caminhada do ano passado e senti falta de outros que não vieram este ano. Notei que ao longo do caminho fui me familiarizando com as passadas dos companheiros; quando eu percebia que alguém se aproximava, não levantava os olhos, apenas aguçava o ouvido para arriscar: este é o Alair, a Cecília, o Cláudio com certeza... com o rabinho do olho apenas verificava que tinha acertado. No penúltimo trecho antes de entrar na cidade, foram alguns quilômetros que caminhei sozinho com um odor penetrante dos pinheiros que ladeavam a estrada, e me sentia leve. Estranhamente leve quando o sol brotou no horizonte com suas cores bregas e maravilhosas. Atravessamos depois um mar de feiura e pobreza que não me abateu. Aumentou o meu desejo de compreender esses mistérios que nos são dados viver. Chegando à igreja de Potim: povo. A comunidade nos esperava desde a madrugada com um simpático café da manhã. Eles eram um povo feliz de nos receber e nós éramos povo grato pelo acolhimento. E na basílica fica mais forte ainda a sensação de pertencer a esse povo de deserdados, de mendicantes que vêm de todos os cantos buscar o conforto e as bênçãos da santinha. Tão pequenina e tão grande no seu amor. Esta foi minha experiência pessoal que relato para que os que não foram possam se animar e vencer os próprios limites para uma experiência tão evidente do “cêntuplo”. E sem nenhuma bolha no pé.
Marcelo Lucato, São Paulo



Participar da peregrinação este ano teve um significado especial para mim, por possibilitar uma experiência profunda de silêncio e de contemplação. A noite estava linda, com lua e estrelas, temperatura agradável e de vez em quando vento; a cruz iluminada na minha frente, os meus amigos caminhando junto comigo, o barulho contínuo dos passos na terra. Nas paradas um respiro, ouvir belos cantos e indicações, rezar juntos, o que ajudava muito a retomar o caminho silencioso de diálogo com o Senhor. Estar diante d’Ele com o que sou, com o que Ele realizou na minha história. Descobri que é uma grande graça já ter vivido um bom pedaço da vida: quantos encontros, dores, alegrias, decepções, surpresas foram providenciadas para eu poder conhecer um pouquinho mais do Mistério, do seu doce, fiel e profundo Amor. Quanta coisa a agradecer e a pedir para mim, minha família, meus queridos amigos, para a Igreja, para o Brasil, para o mundo! Foi uma noite de oferta e pedido, de diálogo. É nesse relacionamento com Cristo, nessa familiaridade construída no tempo, neste lugar – o Movimento – que me educa e não me deixa parada, onde está minha certeza e esperança para viver e enfrentar o que há de vir. Experimentei na carne o que nos disse Dom Giussani: “É uma esperança em mim e em você, em você e em mim, é uma esperança na nossa pessoa ou em algo que está dentro da nossa pessoa. (...) Tudo está no acontecimento – não no que somos, no que podemos ser, digo, como valor moral –, está em algo fora de nós e que se propõe ao profundo de nós.”
Esse gesto significou um acréscimo, um passo a mais que confirma o caminho e gera muita alegria, muito maior do que o cansaço e, por isso, um gosto de “quero mais”, estou pronta para a próxima!
Silvia Brandão, São Paulo



Essa foi a experiência de um boa Peregrinação: não foram umas conversas a mais, não foram as pedras cravando no tênis, não foram o sono ou os pensamentos de que as coisas poderiam ser feitas de outra maneira que dominaram meu caminho. Essa Peregrinação me foi boa porque eu peregrinei de dentro para fora, e pouco me interessava se fora estava melhor ou pior. Eu levava dentro de mim a Nossa Senhora em cuja casa iria entrar num gesto para me ajudar a entender que ela é real, tão real que tem até casa. E que casa!
Essa Peregrinação foi boa, foi muito boa para mim porque não precisei dos cantos, dos 16 km, nem daquela brisa acariciante que soprava sobre todos nós de vez em quando. Ela foi boa porque o meu pedido era muito grande e sem letras, mas não era maior do que a certeza nas tantas vezes nas quais fui abraçada pela Presença mais desejada, a única que tira a gente do desespero que nasce da consciência crescente de que podemos perder sempre mais e de novo coisas que amamos tanto.
Mas houve algo que não me foi dispensável e tinha que estar lá: os meus amigos. Não nos falamos. Mas vê-los caminhar com suas cruzes tão tangíveis, quase visíveis, e com passos de gratidão me fez andar com sono e alegria crescentes. E percebi isso quando, ao sermos recebidos calorosamente pela comunidade de Potim com as músicas do padre Marcelo, me deu uma grande vontade de dançar. E dancei. O cansaço não foi a última palavra como fora, para mim, no ano anterior. Ao contrário, experimentei uma espécie de “antecipação da graça definitiva”, como explicou certa vez São Tomas de Aquino, há sete séculos! Então isso já acontecia há setecentos anos a ponto de ser descrito? Certamente, isso é incrível, mas não mais do que o fato disso ter acontecido em mim aqui e agora.
Foi uma boa Peregrinação. Santo Deus! Que Peregrinação!
Cecília Canalle, São Paulo