Um momento do acampamento de 2019 (Fotos: Kika Antunes)

Acampamento 2019. “Coragem: Seja livre!”

Um encontro 20 anos atrás que levou a uma proposta quase absurda, e deu a Renato a possibilidade de construir "um lugar que abraçasse a todos", no meio de um povo que testemunha uma beleza abundante!

Conheci o Movimento num acampamento de carnaval, em 1999. Fui levado pelo braço por meu amigo Marco a conhecer um padre italiano, o Virgílio Resi, ele que propunha e comandava o gesto do Acampamento. Eram nove horas da manhã, ele estava com um calção de nylon verde limão, chapéu surrado meio sujo, encostado numa cerca de arame e conversando de futebol com alguém. Lhe estendi a mão meio que mecanicamente, e fui logo dizendo: “Opa, muito prazer!”. Mas aquele padre interrompeu a conversa, se deteve um instante meio longo, nada mecânico, me olhando nos olhos, até os ossos (depois entendi...), minha mão no ar, esperando. Por fim sorriu, me apertou a mão e me abraçou, totalmente. Desse dia até seu falecimento em 2002 (apenas 3 anos e poucos meses!) posso dizer, graças a Deus, que tive a Graça de ser seu amigo, seu filho.

O irmão do Virgílio vem ao Brasil anualmente, na data de seu falecimento, em 12 de outubro. Eu lhe propus numa conversa casual, com infinita alegria, que viesse alguma vez ao acampamento de carnaval, pois nesse gesto a memória do Virgílio é presente demais. Ele ficou curioso, prometeu vir um dia... Mas alguém atento ouvia essa conversa, e dias depois fui procurado pelo Marquinho, para uma missão: “Você falava do acampamento com tanta afeição! Você poderia puxar o acampamento este ano? Ser nosso comandante?”.

Nossa Senhora! Eu, que nem conhecia os bastidores da megaprodução que existe por trás do acampamento, cozinha, alimentação, montagem, caminhão, transporte, freezers, bar, etc. Eu, que tenho uma realidade doméstica um tanto quanto delicada e empenhativa (duas crianças pequenas, uma delas está no espectro do autismo). Eu que tinha tantos motivos para me sentir sobrecarregado e totalmente despreparado... Mas percebi no olhar do Marquinho a mesma centelha daquele encontro com o Virgílio. Conversei com minha esposa a respeito, ela ficou contente! Marquinho sabe quem eu sou, o que vivo. Meu coração vibrava! Resolvi ser leal a isso, e mesmo sem me sentir capaz e preparado para a empreitada, disse sim.

Foi uma aventura cheia de vida, de Graça, de amizade e permeada pela memória do Virgílio. Ele que sempre nos transmitia seu desejo de liberdade e que nos incitava à coragem, para viver tudo, para se jogar totalmente na experiência da realidade, da vida. Daí veio o tema: “Coragem, seja livre!”. Me joguei com meus amigos mais experientes Marquinho, Marcelo, Viviane, Francisco, Jucelino, João, Nane, Helton, Marco, Martionei, Ely, Helena, Padre Tom, Marcela, Amanda, nas organizações e estruturas da coisa. Nos reunimos, concordamos, discordamos, rezamos, persistimos. É bom fazer algo pelo Outro, a própria opinião não é o que mais importa, aprendemos a ficar livres até disso!

Aí encontramos um lugar desconhecido, Rio Preto. O Helton disse: “Nós cabemos aqui!”. Que coisa bela saber reconhecer na realidade uma possibilidade, uma novidade, um frescor! Teria sido talvez mais cômodo acampar no mesmo lugar do ano passado, mas que coragem a dos meus amigos em propor a novidade, aquilo capaz de dilatar o horizonte. Porém outro grande passo de coragem ainda estava por vir...

Lembrando-me de como fui acolhido pelo Virgílio, entendi a importância desta palavra em tudo o que estava em jogo. Algumas pessoas com mais idade ou dificuldade com o esquema “selvagem” do acampamento também manifestaram seu desejo de ir, de estar com os amigos. Algumas famílias com recém-nascidos também me olhavam instigados. Outros, que antes eram participantes fervorosos do acampamento, se diziam velhos, desanimados. Era preciso um lugar possível para todos, que abraçasse a todos! E em Rio Preto isso foi possível, com uma modesta mas suficiente estrutura para as famílias e para quem necessitasse. Que Graça!

Tão logo abrimos as inscrições, percebemos que o número limite de inscrições planejado seria atingido rapidamente. E agora? Fechamos as inscrições conforme o planejado, mas uma enxurrada de e-mails e pedidos de todo tipo e lugar começou a chegar, todos importantes, todos inegáveis. Precisaríamos dilatar nossos limites para atender a todos ou então dizer não àquelas pessoas. Mas resolvemos acolher todo mundo, comunicando a todos que o acampamento é um gesto feito por cada um de nós, uma experiência de protagonismo pessoal e zelo pela comunidade. Neste acampamento percebi que faço parte de um povo capaz de ouvir, se alegrar e seguir. Como, por exemplo, ficou nítido quando o Nane nos convidou para uma caminhada em direção ao mirante da cachoeira, mas em silêncio, para se estar totalmente diante daquela Beleza. Lá fomos nós, um batalhão em silêncio, no meio do mato, subindo o morro para encontrar a Beleza!



Ou na dedicação do Ely e do pessoal da cozinha, que teve um acréscimo considerável no número de refeições e que serviu até a pessoas com restrições alimentares. Ou nas celebrações da missa à noite ou na leitura das laudes pela manhã. O bispo Dom Paulinho, Padre Tom, Padre Aurélio, Padre Giovanni e Padre Luciano conosco!
Também nas rodas de cantoria e samba que se formavam espontaneamente, nos carteados, no sarau de música e poesia preparado por nossos amigos, na contemplação das estrelas naquele céu maravilhoso, nos banhos de rio abundantes, no churrasco coletivo, na noite de talentos (tantos talentos!), no baile de carnaval, na caminhada das crianças, nas brincadeiras dos jovens. E também em várias ocasiões em que nada era proposto por percebermos que o espontâneo dava um tom mais que apropriado, em que os amigos podiam se encontrar, prosear, livremente.

Fiquei especialmente tocado no final, ao ver os mais jovens se despedindo, se abraçando comovidos. Eis o que fomos fazer ali: simplesmente estar juntos para desfrutar e contemplar aqueles dias abundantes de Beleza! Nós não somos sozinhos!

E que esta Beleza não nos falte! E que esta herança do Comandante Virgílio perdure, para a Glória de Cristo e para a nossa alegria!

Renato Boechat
Belo Horizonte/MG