Foto Unsplash/Adeolu Eletu

Salvador. Diante dos desafios do dia a dia

A distância da família e a redescoberta do valor do Movimento para a própria vida. A percepção da fragilidade e a retomada cheia de gratidão. Que influencia até no uso do dinheiro

Sou médica e nessa quarentena eu tive que ficar sozinha em casa, pois meu marido, por ser transplantado renal e imunossuprimido, ficou afastado de mim em outra cidade, junto com nossas duas filhas de 6 e de 9 anos. Como atendo em um Pronto Atendimento onde algumas vezes chegam pacientes com suspeita de Covid-19, eu poderia transmitir o vírus para eles.
Sendo assim, passei a aproveitar o tempo livre nos fins de semana (sem a família) para retomar o trabalho com o Movimento. Passei a mergulhar nos textos da Escola de Comunidade (EdC), da Fraternidade, a participar com assiduidade dos encontros pelo Zoom às quartas-feiras, a assistir as transmissões da EdC de Carrón, fazendo anotações e confrontando com a vida, sem me dar conta exatamente do alcance que esse trabalho vinha tendo nos meus dias.

Até que por uma semana eu interrompi o meu trabalho com a EdC porque fui solicitada para escrever um artigo para um de meus trabalhos. De repente eu me vi tomada pelo medo de não dar conta e esse medo me tomou completamente. Eu passei a ficar diante da realidade exatamente como uma criança que de súbito perde-se de seus pais e tudo que antes parecia tranquilo passou a tornar-se fonte de grande angústia. Para fugir da angústia e, portanto, da realidade, eu passei a dormir. Sim, dormir.
Dormir muito, muito mais do que precisava e muito mais do que podia, a ponto de adiar ao máximo escrever o bendito artigo e, pior, até comecei a chegar atrasada no trabalho. Sentia-me apática e sem ânimo. Continuava a temer por não conseguir escrever o artigo, o que acabei fazendo muito bem, mas tenho que reconhecer que foi debaixo de uma grande dificuldade, com muito sacrifício.

Quando ficou pronto eu nem acreditei, e para mim ficou muito claro que aquilo era fruto de uma grande graça e não fruto da minha capacidade, pois por minhas forças eu não estaria me levantando nem da cama. Depois tive que me confrontar com minha gerente sobre meu estado de apatia em um dos meus trabalhos. Logo já fui surpreendida por um acolhimento que não era de ser esperado, no qual ela me apontava que a falta de perspectiva diante dessa pandemia poderia estar sugando as minhas forças e que eu tivesse um pouco mais de aceitação para comigo mesma. No entanto aquelas palavras não me consolavam.
Foi quando eu decidi retomar o trabalho da EdC e li justamente o ponto sobre a moralidade (L. Giussani - S. Alberto - J. Prades, Deixar marcas na história do mundo. Ed. Cia Ilimitada, São Paulo 2019, p. 86-101). O fato é que a partir desse trabalho eu passei a experimentar como se eu fosse aquela criança perdida que reencontrasse seus pais: a realidade voltou a ser interessante para mim. Mesmo na solidão da minha casa e experimentando a saudade da minha família, eu já não queria dormir o tempo todo. E eu sabia que isso era novamente fruto de uma graça que me alcançava a partir de uma abertura introduzida pelo texto da EdC e pelos próprios encontros virtuais, em especial a que tivemos como convidado o padre Julián de La Morena. Como diz na página 93: “Da mesma forma que o início de qualquer movimento nosso não é análise do que os olhos veem, mas abraçar o que o coração espera, a perfeição também não é o cumprimento das leis, mas a adesão a uma presença”. Estar acordada hoje é para abraçar o que o coração espera e aderir a uma presença.
Mas como seriam os próximos dias? Eu me vi fazendo essa pergunta e a resposta me veio do próprio texto da EdC: “O bem vence sempre, (...) é a última palavra sobre a própria pessoa, sobre o seu dia, sobre o que ela faz, sobre o que fez e sobre o que vai fazer. O homem que vive essa esperança em Cristo permanece em ascese” (ibidem). E eu tenho experimentado essa esperança dentro dos desafios da realidade a cada dia.

Um outro testemunho que eu queria compartilhar é que um pouco antes da pandemia eu já me sentia provocada a acertar as contas com o Fundo Comum*, especialmente o da Fraternidade. Quando fui verificar eu tinha mais de 1 ano sem pagar, e aí eu resolvi acertar parte do que eu devia. No entanto, durante a pandemia eu me dei conta da graça de poder pagar as minhas contas e de ter alguns trabalhos e a maioria deles não ter sido impactado pela quarentena, exceto o consultório que nunca foi a minha maior fonte de renda. Isso me fez lembrar de quando a Cleuza falou que o “Senhor nos preparou para essa pandemia!”. Ele, de fato, me preparou para continuar sustentando a minha família nesta pandemia!
E eu também não pude não deixar de me provocar por aqueles que não estão tendo a mesma graça. Foi assim que eu decidi pagar os meses que restavam até o mês atual e em maio eu decidi aumentar a minha contribuição à Fraternidade. Para mim foi como compartilhar um bem que vem me alcançando no concreto das coisas da minha vida e no meu destino. Assim como tem sido comprar uma cesta básica além das minhas compras para doar para um estranho(a) que eu sei que vai me abordar quando eu sair do mercado... Eu já não consigo virar o rosto graças ao meu desejo de bem e principalmente porque eu já sou olhada no detalhe, e sobretudo com grande e imensa misericórdia.

Regilene, Salvador (BA)

*Todo inscrito na Fraternidade de Comunhão e Libertação compromete-se a contribuir mensalmente com um valor livremente estabelecido por cada pessoa. Este fundo é utilizado para apoiar atividades missionárias e culturais do Movimento; e socorrer necessidades identificadas pela Diaconia Central de CL.