O curso do rio

Duas amigas, tocadas pela ida a uma cachoeira, divagam sobre a vida e os caminhos para a felicidade dentro da fé em Deus
Agatha e Giovanna

Conectadas pelas atividades em torno do Movimento Comunhão e Libertação, Giovanna Ottoni e Agatha de Souza Azevedo são duas jovens que se conheceram durante uma ida à cachoeira. No passeio, a fé, a vista e a coletividade se fizeram presentes, e a partir de suas vivências, que convergem e divergem a todo momento, decidiram escrever sobre a vista e seus caminhos. Com fé e esperança, uma psicóloga educadora marcada pela experiência da fé e uma jornalista, poetisa e militante que venceu a leucemia divagam sobre a vida e os caminhos individuais e coletivos para a felicidade dentro da fé em Deus, aquele que tudo é e está. Confira o diálogo:

Nos últimos tempos, tenho refletido sobre a naturalidade com que as águas percorrem a terra. Existe um curso natural que não se pode deter, que arrasta pedras, remodela a terra e se adapta para que o curso natural dos rios, lagos e cachoeiras siga.
Talvez sejamos um pouco águas desta vida. E sem nos darmos conta, nos perdemos em caminhos que não são naturais, ou adequados para as nossas veredas. A vida pode ser sobre seguir estes cursos naturais também, e caminhos que não se abrem podem significar lugares que não nos pertencem, porque o que é natural flui como a correnteza. Exige esforço, cuidado, trabalho e amor, mas é natural. Não podemos ser transposições, rearranjos e despejos de nós mesmos, e às vezes parece que nos forçamos a isso sem nos darmos conta. Talvez o ego nos faça desaguar e cortar por lugares que não nos cabem. Ou talvez se doer e apertar nos escombros de uma vida que não nos pertence, e se desviar do propósito e da nossa abundância, seja natural para o nosso crescimento e amadurecimento. Tudo é caminho adiante, travessia. Cada passo da vida tem o seu sabor. É preciso voltar ao centro de si para retomar o curso do rio, o que queremos verdadeiramente e portanto nos pertence e é natural. Tenho feito um caminho de volta para casa.
(Agatha, 15 de junho de 2023)

Um amigo me disse uma vez: “Você é um rio que corre solto”. Algo que me correspondia ouvir, que realmente dizia de mim com uma imagem verdadeira. E ele acrescentou depois: “E todo rio, quanto mais caudaloso, precisa das margens para correr veloz, para ser ainda mais fecundo seguindo seu curso”. Essa parte me chegou com uma certa novidade, não no sentido de eu nunca ter parado para pensar o que seria viver espontaneamente sem ajuda a descobrir o que carregamos no nosso fluxo, no profundo das nossas águas, sem companhia para ter a força de passar pelos obstáculos que vão surgindo no leito, sem uma espécie de contorno que nos faz mais consciente dos traços que definem nossa humanidade… eu já havia de certa forma reconhecido na minha experiência essa necessidade que ele dizia “das margens”. A novidade estava exatamente nessa imagem, porque a impressão que eu já carregava me remetia a algo que “nos espreita”, algo que talvez soasse como nos “apertando”, “restringindo”, “impedindo de transbordar”. Naquele dia não me pareceu assim, não me chegou como uma “limitação” de mim mesma, uma limitação do meu “potencial de rio que corre solto”. Naquele dia, escutando isso desse amigo, nasceu uma certeza que outra amiga, falando mesmo da natureza que a apaixona, tinha me explicado sobre a importância das margens para vida de um rio, para segurança do rio, para os peixes e seres que sobrevivem dele… A maior beleza do rio é ser gerador dessas vidas dentro de si e ao redor, é permitir que uma comunidade decida ficar ali do lado, criar os filhos perto, plantar e colher nas suas redondezas.
(Giovanna, 16 de junho de 2023)

Vou dançando e desenhando posicionamentos na minha cabeça de maneira pensada, querendo controlar o curso do rio, quando na verdade eu deveria me deixar boiar, flutuar, fluir. Não é fácil não controlar as coisas, não o contrário que seja possível em algum momento, mas às vezes essa perda completa da noção de posse de si mesmo e da sua própria existência assusta. É preciso ter o controle de algo nesta vida, se não é do curso dela, que seja de si mesmo. Nesse momento, por mais que eu deságue em outros afluentes, a jornada diz um pouco mais de mim, e meu riacho, ribeirão, vereda. Me pego pensando no que enfrentar de maneira solitária e no que enfrentar de maneira coletiva. É preciso, por vezes, gritar para mim mesma: 'se acalme que por mais que a vida seja pra ontem, é tempo de mudança, e a revolução tão sonhada já há de chegar'. Também pudera, água parada nunca rendeu coisa boa. Deixe estar. Talvez seja mais sobre descobrir quem se é nesse rio individual antes de desaguar na imensidão do mar que são os outros. E aí, talvez, quem sabe, conseguir fluir na correnteza e nas ondas. Onde se é bem-vindo e o transcurso flui com naturalidade. Gosto da liberdade que há em ser um rio que corre solto, ainda que transcorra por caminhos e lugares diversos. Só é possível ser coletivo porque se reserva tempo para ser individual, por si só, às avessas e talvez até com um pouco de solitude, por que não? Além das interações sociais e vivências, nossos rios são abastecidos pela nossa própria energia e conexão com o todo. (Agatha, 07 de julho de 2023)

Me dou conta que esses momentos de “correr solta” carregam sempre um certo descontrole, um certo e real fluir “natural”, como se correspondesse mais do que qualquer planejamento prévio. Ontem fizemos uma trilha e erramos a rota, nos perdemos, começamos a andar dentro de um mato desconhecido guiados por um aplicativo via satélite. A tecnologia salva e, ao mesmo tempo, corre o risco de nos deixar em pedaços, sem foco, sem atenção, às pressas, sem capacidade de contemplar a formiguinha carregando a sua folha tão maior que ela mesma, parecendo quase nem fazer esforço. Talvez se a gente parasse para olhá-la, contemplá-la de perto… pensaria que também nós queremos carregar as nossas folhas, aquilo que nos garante sustento… “sem esforço”. Talvez o maior esforço esteja além do carregar “com a força física”. É o “peso” do sentido, da resposta às nossas perguntas de por que precisar levar nas costas o próprio alimento da vida. Tem experiências que dão fome. Tem experiências que matam a fome. Tem experiências que dão sede, tem experiências que matam a sede. Não sei me abastecer sem elas. Todo rio precisa da fonte.
(Giovanna, 17 de julho de 2023)

É preciso estar constantemente vigilante, pois compreender o curso do rio é tarefa árdua. Como gotas no Oceano, estar em coletividade fortalece a correnteza e ajuda a indicar os rumos mais interessantes, sábios e sólidos da vida. É saboroso e mais colorido aprender a compartilhar até mesmo o simples e cotidiano que tece a trama da vida. Assim seguimos o curso do rio, em uma perspectiva nova, onde o ditado da “água mole em pedra dura” não se aplica, é melhor que a insistência em lugares onde nosso fruir não cabe, é aventurar-se no abismo do novo que desemboca em cachoeira e renovação se compartilhado com quem corre os leitos do rio da vida ao nosso lado. Se enfrentada com fé e coragem, evolução nada mais é do que deixar fluir a vida e confiar no sagrado que nos rege.
(Agatha, 27 de fevereiro de 2024)