«Ser santo é tarefa humana»

Breve resenha sobre a obra Solte os cachorros, livro do bimestre proposto para os meses de agosto e setembro/2021. Da Passos de set/2022
Cecília Canalle e Raúl Gouveia

Não é sem um tanto de susto e fôlego que se lê Solte os cachorros, da escritora mineira Adélia Prado. A leitura proposta para o bimestre surge como uma enxurrada de pensamentos fragmentados, um fluxo da consciência com observações aparentemente díspares cujo ligame pode não se reconhecer de imediato, mas permeia todo o livro: a busca do algo que sustenta e dá unidade a todas as coisas. Como no dia em que a narradora descreve a chegada da luz elétrica e se pergunta «que lugar terá esse fato irreversível, no cômputo final, quando o Senhor reunir o povo pra separar os bodes dos carneiros, assim como os sacos de plástico e as carteirinhas onde os fotógrafos acomodam para os fregueses seus retratos três por quatro e mais esta frase escrita com letra ginasial na página de um livro de Histórias do Brasil: Ferreira Brito substitui Araújo Ribeiro» (p.11).

Parece tolice, mas é genial! Não há nada que escape à redenção, toda a realidade se oferece como sinal de uma outra coisa maior do que ela. Por isso a indagação é aguda: nada se desperdiça. Seja o momento glorioso e histórico da chegada da luz em sua casa, seja uma anotação absolutamente secundária e perdida num livro de História: tudo provoca esta escritora a se perguntar sobre o destino de todas as coisas, a importância do tempo e de cada gesto.

Em toda sua obra, a experiência de Deus, a experiência religiosa, a experiência que nos abre para tudo, nunca está separada dos acontecimentos do cotidiano, ao contrário. A circunstância é o caminho escolhido por Deus para chegar até nós. «Por isso mesmo», teologiza a narradora, «eu acho fascinante a concreteza do mundo, a massa compacta e fumegante do angu» (p.81).

E, justamente, por conta da tal concreteza do mundo, reveladora da Presença de um Outro, ela pode olhar para sua própria experiência, ainda que dolorosa, sem medo por conta da misericórdia que reconhece em sua vida: «Acho que já posso ser papa. Como Pedro, afoita, covarde, cheia de inábil amor. Como Pedro, chorando. Amargamente» (p.44). A vida que é sem parar faz a narradora avaliar continuamente o impacto que a realidade tem sobre ela, sem censurar nada, exigindo que a vida responda. E a vida responde.

«Eu acho que o homem é religioso como é bípede. Tem Deus no começo e no fim. No meio fica a gente esperneando. Se espernear de acordo, isto é, com sinceridade, esbarra NELE, não tem conversa. Tem gente que grita por gritar, porque acha bonito. Comigo aconteceu, não por mérito meu, está se vendo, que esbarrei cedo. Mais esperneio, mais esbarro e fico puxada, agulha no imã. Como posso falar de outra coisa?» (p.50).

É a coragem de dizer eu, o grande tema do Meeting de Rímini deste ano. E de onde pode vir essa coragem? Porque o habitual é entendermos que nossos limites, as nossas cismas, os nossos pequenos peca- dos, os defeitos de nossa personalidade, enfim nossos limites e imperfeições sejam um impedimento para a santidade. Mas, na obra desta mineira, prova-se, justamente, o contrário. Experimentamos a misericórdia de Deus porque tudo se torna caminho de encontro, de reconhecimento da sua Presença. Mas, é claro, para quem tiver “ouvidos”.

A estrutura fragmentada e aparentemente desconexa do livro reflete a forma como a realidade chega até nós: através de uma profusão de fatos e detalhes que nos solicitam, despertando as mais variadas reações. O problema é que muitas vezes procuramos nos resguardar deste embate, permanecendo distraídos ou até mesmo procurando “encaixar” os fatos em ideias predefinidas. Mesmo quando as interpretações com as quais “etiquetamos” as circunstâncias provêm de uma experiência religiosa ou expressam conteúdos teoricamente verdadeiros, pode ser um modo de abrandar o impacto com a realidade.

Contra essa tentação, Adélia testemunha que o impacto com o real é, constantemente, provocativo e surpreendente: é preciso fazer de fato experiência das coisas, sem saltar nenhuma etapa do percurso, para compará-la com nosso coração sem nos furtarmos à sinceridade das perguntas que nos surgem e, somente daí, chegar a uma conclusão. Só assim é que aquela experiência se tornará nossa: algo vivido e não um discurso repetido.

Assim, a tensão entre as circunstâncias imediatas e a dimensão da santidade perpassa todo o livro: «Ser santo é tarefa humana» (p.83). É a certeza num destino bom, a certeza que Deus nos acompanha e aflora em qualquer circunstância da vida. Não é a certeza que Deus seja um amuleto que provê sorte e que, por- tanto, não haverá a situação difícil. Mas a confiança baseada na experiência que Deus sempre oferece sua inefável companhia quais sejam os abismos por onde passemos.

«Amor eu disse. Não é este o nome do que nunca desiste de soprar uma forma sobre o barro? (p.63).»

Que tal começarmos a leitura?