Igreja. A expressão de Nossa Senhora na cultura brasileira

Nossa Senhora no cotidiano brasileiro. A invocação da madrinha, mãe e companheira de caminho (de Passos n.44, outubro de 2003)
José Eduardo Ferreira Santos

A presença de Nossa Senhora, desde muito tempo, faz-se presente nas artes e na cultura brasileira: nas pinturas, nos poemas, nas esculturas e na música, particularmente no samba carioca, em composições de criadores populares da estirpe de Angenor de Oliveira, o Cartola da Mangueira (1908-1980), e canções de domínio público, resgatadas por Clementina de Jesus (1901-1987). Recentemente encontrei algumas composições que me fizeram adquirir um novo olhar sobre a sua presença de Nossa Senhora na música popular, especialmente neste momento em que Dom Giussani tem chamado a atenção para a sua presença como companhia em nosso caminho.

A figura de Maria é revelada e cantada com a proximidade característica da Mãe de Deus e dos homens, seus filhos. No Brasil, a presença de Maria vai permear muitos momentos da vida, da cultura e da tradição. Trazidas nas caravelas, as primeiras imagens de Maria aportaram no Brasil no alvorecer da colonização, fazendo uma importante ligação entre o velho e o novo mundo que se descortinava. Com isso, a devoção mariana foi se expandindo pelas casas e igrejas do Brasil. Desde Nossa Senhora do Bom Parto a Nossa Senhora das Maravilhas, que deu a inteligência ao padre Antonio Vieira (1608-1697), no famoso “estalo” na igreja do colégio jesuítico de Salvador, Maria é uma presença constante na cultura brasileira, permeando a vida do povo brasileiro nas mais diversas circunstâncias. Até nas mais corriqueiras, como as notas que os seminaristas rogavam para alcançar, surgindo daí a invocação de Nossa Senhora do 7 (Sete), cuja imagem pode ser vista no Museu de Arte Sacra da cidade de Salvador.

Nossa Senhora das Maravilhas.

Essa história que a tradição soteropolitana guarda sobre o “estalo” do padre Antonio Vieira é bem emblemática da presença de Nossa Senhora na vida colonial brasileira. Diz a tradição que Vieira era um menino sem muitos dotes intelectuais e que, por isso, passava horas a rezar diante da imagem de Nossa Senhora das Maravilhas pedindo a o dom da inteligência, até que foi atendido: logo após uma dor de cabeça tornou-se o maior orador da língua portuguesa. Essa imagem encontra-se ainda hoje no museu de Arte Sacra de Salvador, coberta por uma camada de prata.
No ambiente urbano do Rio de Janeiro do século XX, em meio às festividades e ao cotidiano de trabalho, amores, música, belezas e amizades, a figura de Nossa Senhora vai se delinear como o centro de onde emerge a beleza das coisas.

A partir de três sambas vamos aprofundar alguns aspectos da presença de Nossa Senhora da vida brasileira.

Dê-me graças, Senhora
De Cartola, em parceria com Cláudio Jorge, este samba de 1940 com o título Dê-me graças, Senhora vai fazer uma união entre a beleza da natureza e da criação até chegar ao olhar de Nossa Senhora, que resgata a humanidade, sedenta de proximidade com o divino, chegando, com isso, a mergulhar na realidade humana do compositor.

O sol, a lua,
A terra o mar
É um mundo novo
Em teu olhar


A beleza de Maria é um olhar que resgata a beleza da vida e reconduz o coração do homem a essa mesma beleza. O olhar de Maria refaz a experiência de mundo do homem.

Estrelas vejo a cintilar
Que brisa amena ao te fitar
És indelével como a flor
Qual foi o Deus, teu escultor?
E ouvia a voz e a voz dizia:
“Eu sou a Mãe de Deus, Virgem Maria”


Maria, a beleza encarnada por um sim. Note que há um traço de união entre a humanidade e o desejo, aqui representado pela estrela, pela leveza da vida e pela harmonia da natureza diante do olhar do homem para ela.
A frase “Que brisa amena ao te fitar” traz a ideia de pouso, segurança, como quem repousa nos braços da mãe, qual a Senhora da Piedade. A leveza de Nossa Senhora como mãe aparece neste “indelével como a flor” .

Dê-me graças, Senhora
Um sorriso a quem chora
Onde há ódio vos peço
Que ponha amor
E assim eu serei mais feliz
Que sou


Maria aparece como fonte de devoção e lugar de esperança, filiação. Essa presença maternal de Maria como intercessora e mediadora vai permear muito da cultura brasileira, baste lembrar, por exemplo, a beleza do Auto da Compadecida, de Ariano Suassuna, onde Maria é invocada por João Grilo e intercede por todos no Juízo Final. Essa característica maternal de Maria foi assimilada pelo povo brasileiros em suas expressões mais triviais e profundas, como “Virgem Maria” , ou o “Vixe Maria”, “Minha Nossa Senhora” , “Mãe do Céu”, “Nossa Senhora” dentre outras, revelando uma familiaridade com a sua companhia constante.
Na música há uma abertura ao mundo, aos outros, que nasce de um grande amor que emana de Maria. É na experiência do amor e da devoção que o pedido que é para si se expande ao mundo inteiro. Como consequência, a felicidade pessoal coincide com a realização do destino próprio e dos outros.

Festa da Penha
No Brasil, a figura de Maria está relacionada a muitas festas que remontam à origem da colonização. Uma das características desses momentos é a convivência, num mesmo ambiente, de muitos habitantes das cidades, que são irmanados pela presença de Nossa Senhora. Algumas festas tornaram-se muito famosas pela beleza e pela unidade que havia entre os devotos. Nossa Senhora do Rosário, das Candeias, da Glória, da Conceição, de Nazaré, da Boa Morte, da Penha, sempre estiveram ligadas a festejos que no imaginário popular eram momentos de oração, pagamento de promessas, encontro, festividade, música, cachaça, roupas compradas para a ocasião e boa comida. Ousaria dizer que a devoção mariana é um traço de união do povo brasileiro. Nos romeiros e peregrinos há uma constante alegria em agradecer as graças recebidas. Dessa gratidão surgem versos como os de Cartola, cheios de afeto e pedidos.
Em torno da figura de Nossa Senhora foram criadas muitas irmandades, cujos fins variavam entre a devoção, a compra de cartas de alforrias a negros escravos e a realização de festas.
No samba Festa da Penha, criado entre 1937 e 1940 por Cartola e Asobert, fala-se da famosa festa realizada no Rio de Janeiro, onde o devoto busca um terno para ir à festa, fazer sua oração e pedidos.

“Uma camisa e um terno usado
Alguém me empresta
Hoje é Domingo
E eu preciso ir à festa
Não brincarei
Quero fazer uma oração
Pedir à santa padroeira proteção
Levarei dinheiro pra comprar
Velas de cera
Quero levar flores
Para a santa padroeira
Só não subirei
A escadaria ajoelhado
Pra não estragar
O terno que tenho emprestado”


Interessante que o autor tem toda uma preparação para ir à Festa da Penha, ou seja, para comemorar. Tudo, para isso, é levado em conta: a roupa que não tem, mas pede emprestada; o dinheiro para comprar velas e o tempo do Domingo como o dia propício para o encontro com a padroeira. Não há espaço para divisões. A festa, os pedidos, o limite (não subir as escadarias com o terno alheio para que não se estrague, etc.); a oração, a roupa, as amizades, o dinheiro, tudo converge para a presença no momento de celebração, pois a festa da padroeira envolve a globalidade da vida. O samba é espirituoso, porque respeita tudo, até os limites. Note que Nossa Senhora protege e cuida, por isso a devoção filial para com ela.
Historicamente a devoção do povo brasileiro se alimentava nas diversas irmandades e confrarias dedicadas a Nossa Senhora, compostas por homens e mulheres, escravos e livres, cujos momentos de encontro, festividade e celebração marcavam a vida dessas pessoas, as quais, a partir dessa experiência de fé, se reuniam em torno de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos ou Homens de Cor, construindo igrejas e comprando a alforria dos escravos, no período colonial.

Piedade
Outro samba onde aparece a figura de Nossa Senhora é um partido-alto, que se caracteriza pela repetição de um refrão após cada frase que é cantada. Este samba é de domínio público, ou seja, uma canção que permaneceu no imaginário popular sem autores específicos, que vai sendo assimilado pelas pessoas durante décadas e séculos, sendo modificado e refeito, fazendo permanecer uma parte central, que o identifica durante muitas gerações.
Piedade é um samba de partido-alto carioca, que mantém as características das festas católicas brasileiras permeadas pela presença africana e portuguesa, pautadas pela tradição católica europeia, centrais no catolicismo brasileiro. As festas de Nossa Senhora, no Rio de Janeiro e na Bahia, sempre foram locais de encontro e festividade, sendo que na Bahia, ainda hoje, reina o samba de roda e no Rio existem as rodas de samba, onde surgem os partideiros, muitos dos quais famosos pela memória e criatividade, chegando a varar horas criando versos sobre um mesmo tema, alguns dos quais registrados em discos.
Esse partido foi recolhido por Clementina de Jesus, grande cantora de partido-alto e sambas, assim como canções de trabalho aprendidas com seus avós ex-escravos. Teve o encontro fundamental de sua vida, com o poeta Hermínio Bello de Carvalho, em uma festa de Nossa Senhora da Glória, no Outeiro da Glória, no Rio de Janeiro, no qual ganhou projeção nacional com sua voz e cantos inigualáveis para a cultura afro-brasileira.
Piedade é uma canção simples na construção, intercala versos nos quais a presença de Nossa Senhora se identifica com uma familiaridade impressionante, chegando a explicitar a proximidade da presença mariana em relação aos devotos. Maria aparece como a madrinha, a mãe, a mãezinha, que interfere no cotidiano, naquilo que ele tem de mais natural, prosaico, rotineiro.

Piedade, oi – Piedade
Tem piedade, ó Mãe de Deus – Piedade
Nossa Senhora da Penha – Piedade
Que altura foi morar – Piedade
Naquele lugar tão alto – Piedade
Freguesia de Irajá – Piedade


Note a estupefação ante a localização geográfica da igreja de Nossa Senhora da Penha do Rio de Janeiro. Essa estupefação diz respeito à topografia onde estão localizadas as igrejas de Nossa Senhora, que são lugares onde o fiel devoto faz a experiência de beleza e de alcance de graças recebidas. Este traço pode ser visto em muitos lugares do Brasil, como na Serra da Piedade, em Minas Gerais; as igrejas da Graça, Escada, Vitória, Carmo e Monte Serrat, em Salvador. Essas igrejas – ou casas de Nossa Senhora – geralmente descortinam ambientes de beleza, diante do mar e do horizonte, com suas serras. Todas constituem um presente à veneração dos visitantes. A beleza dos templos católicos é uma constante na devoção a Nossa Senhora.

Nossa Senhora da Penha - Piedade
É madrinha de João - Piedade
Eu também dou afilhada - Piedade
Da Virgem da Conceição – Piedade


Minha mãe, minha mãezinha - Piedade
Que mãezinha tenho eu - Piedade
Quem comeu meu feijão todo –Piedade
Nem um caroço me deu - Piedade


A forma afetiva de relacionar-se com Nossa Senhora é um traço da identidade nacional. Maria, a mãe e a madrinha, são o foco afetivo do relacionamento de uma sociedade pautado sobre o lado materno da Mãe de Deus, ou seja, uma presença próxima e íntima, que conhece a humanidade a fundo.

Se passares em Mangueira - Piedade
Diga adeus e vá andando - Piedade
Também diga àquele ingrato - Piedade
Saudade tá me matando –Piedade

Eu não bebo mais cachaça - Piedade
Nem o cheiro quero ver – Piedade
Quando eu vejo ela no copo - Piedade
Não posso deixar beber – Piedade


Nas festas católicas brasileiras a vida tem lugar dentro da religiosidade. Este traço é vivido sem divisões ou parcialidades. Tudo encontra abraço na figura da Mãe de Deus: os amores, a vida, o trabalho, os amores, a busca humana de realização.
Ainda hoje, por exemplo, nas festas da Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte, em Cachoeira, Bahia, os fiéis e visitantes participam do tradicional almoço e do samba de roda organizados pelas velhas senhoras que levam adiante o ciclo da dormição e glória de Nossa Senhora, em agosto, em uma irmandade centenária, que tinha como um objetivo libertar negros escravos, comprando-lhes as cartas de alforria, e venerar a presença a presença da Mãe de Deus.
Por tudo isso, a presença de Maria na cultura brasileira é um traço da identidade deste povo que aprendeu a amar a Mãe de Deus e nossa.

Discografia:
CARTOLA, 70 ANOS. BMG – RCA, 1979. Produzido por Sérgio Cabral, Rio de Janeiro.
CARTOLA ENTRE AMIGOS. Funarte, 1983. Produtor João de Aquino, Rio de Janeiro.
CLEMENTINA DE JESUS. EMI-ODEON,1968. Produzido por Hermínio Bello de Carvalho, Rio de Janeiro.