Testemunho. “Faltava alguma coisa...” Das casas à comunidade

Do desejo de dar uma casa aos sem-teto ao encontro com CL, discreto e fascinante. O testemunho de Cleuza Ramos, responsável junto com Marcos Zerbini pela Associação dos Trabalhadores Sem Terra de São Paulo (de Passos n.62, junho de 2005)
Cleuza Ramos

Cleuza Ramos começou desde cedo a fazer um trabalho com habitação popular. Hoje, junto com o marido Marcos, guia milhares de pessoas da Associação dos Trabalhadores Sem Terra de São Paulo. As ações reivindicatórias, a compra coletiva de terrenos, as iniciativas populares até o encontro com o Movimento Comunhão e Libertação (CL). Publicamos a seguir notas do seu testemunho na Assembleia Nacional de Responsáveis de CL realizada em fevereiro de 2005 no Rio de Janeiro.

Eu nasci em Minas e com dez anos de idade eu já participava dos grupos da paróquia. Viemos para São Paulo morar num bairro muito pobre e nós não tínhamos a Igreja, era um barracão. Minha luta começou aí. Eu com 10 anos de idade me juntei às “velhas” da minha comunidade para fazer a Igreja. Fizemos quermesses, feijoadas, vendíamos roupa velha, tudo para fazer a Igreja. Com isso fui até os 26 anos, trabalhando ali, indo na favela, ajudando num trabalho assistencialista mesmo. Mas eu sempre queria alguma coisa a mais. Aquilo não estava bom. Eu participava de catequese, de encontro de casais, de tudo o que era encontro na Igreja, mas faltava alguma coisa. Em 1980 eu fazia um trabalho com moradores de rua e uma vez por semana distribuíamos o sopão à noite. Aos sábados eu ia à favela para fazer aquele trabalho assistencialista de ajudar a tirar registro das crianças, mas faltava alguma coisa.

Cleuza e Marcos Zerbini na Associação.

De onde partir
Em 1986 o tema da Campanha da Fraternidade foi “Terra de Deus, terra de irmãos”. E aquilo me chamou a atenção. O livrinho que usávamos para reflexão dizia assim: “Vocês estão já ajudando os sem-casa, ou ainda estão rezando para Deus ajudar eles?”. Aí eu disse: “Isso é comigo, eu preciso fazer alguma coisa” e comecei a chamar o pessoal da comunidade para participar da Associação (dos Trabalhadores Sem Terra de São Paulo; nde). Fazíamos abaixo-assinado, levávamos para a Prefeitura, para o Governo do Estado... Foi aí que começamos a Associação, que não deu resultado enquanto era só reivindicatório. Então começamos com essa experiência de comprar a terra coletiva para colocar as famílias. Compramos a primeira terra em uma área grande, com cada lote bem barato. Mas essa terra precisava de infraestrutura depois: água, luz... e quando fomos atrás disso vimos que ficava mais caro do que a terra. Então começamos a pressionar a Prefeitura, e já estamos por volta de 1988/1989. Começamos a pressionar a Prefeitura e fomos denunciados para o Ministério Público, pois diziam que não tínhamos seguido as Leis. Depois, em um encontro com padre Ticão (pároco na Zona Leste da cidade, uma das regiões mais povoadas), ele contou sobre uma comunidade no Rio Grande do Sul onde cada um escreveu uma carta para o governador pedindo audiência, por que não conseguiam falar com ele. Aí pensei que essa coisa seria boa pra nós. No dia seguinte começamos a escrever cartas para o governador Fleury para pedir audiência. Escrevemos 40 mil cartas e ele marcou a reunião. Fomos até o seu gabinete e depois ele foi visitar a nossa comunidade; chegando lá, ele se animou com tantas pessoas que viu e mandou colocar água, luz e tudo. Depois disso começamos a fazer os loteamentos direito: compramos o terreno, esperamos a aprovação e construímos. Depois precisávamos de escolas, e essa foi outra luta, mas conseguimos, e assim o bairro, mesmo sendo na periferia, ficou bonito, com escola, água, luz, asfalto. Mas víamos que ainda faltava alguma coisa.

Também devemos fazer o mesmo
Estávamos a 18 km de um posto de saúde. E lá estamos perto da Faculdade de Medicina. Então fomos lá pedir um médico para nós. Falamos com o Reitor e ele disse que mandaria um médico e uma enfermeira. Seis meses depois fui chamada lá para conhecer o médico, Dr. Alexandre, que nos contou que foi enviado não para trabalhar na clínica, mas para fazer prevenção. Ele queria trabalhar na escola porque lá tínhamos muitas meninas com 13, 14 anos, grávidas. Esse era o problema. E os meninos com as drogas. Ele e a Heloísa começaram a fazer esse trabalho lá dentro da escola, junto com os professores. E eu não entendia muito bem o que eles estavam fazendo ali, mas eu sabia que ele era uma pessoa diferente. Ele dizia que eu ia conhecer os amigos dele. E ele sempre falava de um que se chamava Giussani. Do jeito que ele falava para mim, era um amigo com o qual ele morava junto. Começamos uma amizade. Depois, um dia me convidou para participar de um encontro da Companhia das Obras, que foi em 2003. Esse encontro falava muito sobre a questão do jovem, e falou da faculdade. E a gente via muito lá na nossa comunidade que os jovens saem do colegial e depois não têm mais para onde ir. Não têm emprego e param por aí. Só alguns conseguem chegar à faculdade. Nesse encontro um dos rapazes lá do Peru contou que lá eles tinham construído uma faculdade, e eu pensei: “Ai meu Deus, precisa fazer isso aqui também”. Saí de lá com aquilo na cabeça. O Dr. Alexandre me falava que precisava olhar para os jovens e o caminho era a universidade. Através de um amigo do Marcos fomos falar com o dono de uma universidade particular. Fomos lá e conseguimos um convênio para que os jovens paguem só 30% ou 40% do valor do curso. Com esse dinheiro, alguns conseguem estudar. São pobres, mas a mãe e o pai ajudam e aí conseguem pagar. Essa ideia foi tirada desse encontro, começamos no ano passado com um grupo e hoje já tem quase 5.000 na faculdade. Antes o convênio era só com uma, mas agora também conseguimos ampliar para mais três faculdades.

Finalmente uma resposta
Apesar disso tudo eu estava muito infeliz. Meu sonho era fazer uma comunidade, e eu tinha visto que não tinha feito uma comunidade. Tinha feito casa, mas a comunidade não tinha sido feita, e eu sentia muita angústia e muitas vezes falava para o Marcos: “Não estou feliz, estou infeliz. A gente vê esse povo que a gente ajudou e eles não entenderam nada”. Levei para o Dr. Alexandre essa mágoa. Depois conheci o padre Vando, o Ulisses, o Bira, a Gisela, a Ana Lydia e todo esse pessoal que me ajudou muito. No Movimento eu voltei a ter a alegria que eu não tinha mais. Porque encontrei alguma coisa a mais. Realmente agora encontrei a felicidade, encontrei resposta para minhas perguntas. As perguntas que tenho comigo há muitos anos desde quando trabalhava com moradores de rua, e pensava: “Não valeu a pena”; trabalhei na favela por dez anos e “não valeu a pena”; fiquei na Igreja a minha vida inteira e “não valeu a pena”. Hoje o Movimento de CL me deu essa resposta.

Estamos fazendo a Escola de Comunidade com o padre Vando. Sei que estou começando a engatinhar e tenho muito que aprender. Mas com o pouco que aprendi já vejo sinais dentro da comunidade. Já vejo sinais de Cristo, vejo os sinais da fé hoje dentro da comunidade. Essa comunidade de 50 mil pessoas que a gente criou e que não tinha nenhum sinal de Cristo, nenhum sinal de comunidade. Era apenas um conjunto de casas. Sentia vontade de parar. Mas com o padre Vando, com a Escola de Comunidade, com os amigos que a gente encontrou aqui, é claro que o caminho é esse. Tenho que continuar fazendo a Associação dos Sem Terra, mas de uma outra forma, como fala nos livros de D. Giussani, com um outro olhar, esse olhar que o Alexandre, que a Heloísa tiveram comigo. Esse pessoal me mostrou o verdadeiro sentido da vida. Eles me mostraram que existe um outro caminho, que existe um caminho de verdade, um caminho que leva ao Pai, um caminho que leva ao irmão. E queria agradecer a vocês, muito, muito, muito, muito, por terem me dado essa oportunidade de conhecer vocês de CL, de me dar essa força que eu tenho hoje. Deus abençoe cada um de vocês. Muito obrigada por vocês existirem, por vocês hoje fazerem parte da minha vida.