Acolhida. Perdoar a diversidade
O reconhecimento de uma Presença que muda o dia a dia e da qual nasce a descoberta do sentido da vida. Um entusiasmo que dá origem ao povo cristão como vitória e afirmação da vida contra a ameaça do nada (de Passos n.55, outubro de 2004)Minha filha Ana, com problemas cerebrais desde o nascimento, viveu conosco por 15 anos, até 1995. Ana jamais saiu da cama e da cadeira de rodas. A vida com Ana, o esforço humano que nos acompanhou para cuidar dela diariamente, aos poucos, muito lentamente (nada é óbvio nessa situação) nos levou a entender o que realmente tínhamos diante dos olhos. Mas para entendê-lo foi preciso um grande avanço na liberdade e a aceitação de um caminho. Pois diante de Ana não bastava mais a comoção e o desejo de ser pai ou mãe e o fascínio da aventura de ver os filhos se tornarem grandes e livres.
A presença de Ana, imóvel, impotente e sofrida, exigia a profundidade de um olhar e uma consciência sobre aquilo de que é feita, de fato, a realidade, que não vem do simples fato de eu ser um pai e, sobretudo, um pai que sofre com o que acontece à sua filha.
Isso eu entendi timidamente, pela primeira vez e depois firmemente, quando padre Giussani viu Ana e conversou com ela. Ele tinha um olhar para Ana, um estar diante dela que eu não conseguia ter. Isso me feria, mas me interessava.
Seguindo esse olhar e as cartas que ele mandava à minha mulher, lentamente começamos a entender que Ana existia para afirmar que o Mistério é tudo, que o valor da criatura está todo no que a forma, do contrário Ana não passava de um acidente da natureza que era preciso eliminar. Ana era o Mistério que se afirmava dentro de um pedaço de realidade, ofendida pelo limite, tanto que aquele corpinho começava a apresentar uma estranha mas real atração, porque nos obrigava a ter uma outra medida para tratar a realidade.
A diversidade dentro do dia a dia
Sendo assim, aprendemos não só a acolher Ana, mas também a tratar a realidade segundo aquele olhar e aquela profundidade que não são fruto da nossa capacidade. É assim que entendo quando Giussani fala do “perdão da diversidade”. É isso, é como se nós tivéssemos que perdoar a forma tão violenta e aparentemente estranha ao que o humano deseja e sente como correspondente, para entender que tipo de Mistério aquela forma continha. Isto é, o valor daquela menina imóvel na cama estava todo no que a formava, no que, naquele momento, a mantinha viva e dizia: “Eu te quero, eu te afirmo”, isto é, estava todo no Mistério que faz as coisas.
A diversidade que irrompe na própria vida, nós a podemos suportar, aceitar, aprender a conviver com ela... Perdoar é uma outra coisa, quer dizer que justamente aquele diferente é a matéria humana, é a carne da minha relação com o Mistério, e essa certeza não é afetada pelo cansaço e pela impotência que, às vezes, podem nos fazer sucumbir.
Só agora eu começo a entender a frase que padre Giussani nos disse quando Ana morreu: “Do vosso consumado sacrifício esperamos mais confiantemente a libertação”. Pensávamos que o sacrifício fosse o enorme esforço e a dor que vivemos; no entanto, começamos a entender que o “consumado sacrifício” é justamente isto: o perdão profundo da diversidade, desse diferente que nos foi dado e que no início era tão distante daquilo que alguém humanamente deseja; e então o sacrifício se consuma, se realiza justamente no momento em que se aceita que esse diferente se torne a carne da relação com o Mistério. Isso dá origem a um modo de ser pai e mãe que antes desconhecíamos.
O primeiro menino de rua
Ana viveu entre quatro paredes, mas da sua presença nasceu um modo de olhar e tratar as coisas que não conseguimos mais tirar de nós, que não é bom só para os deficientes e os infelizes, mas irrompe em toda a realidade. A Casa de Acolhida de Pádua (Itália) nasceu assim.
Nasceu porque um outro pedaço do meu dia a dia foi apanhado por essa novidade no tratar as coisas. Quando encontrei o primeiro menino de rua (e não há nada de excepcional em encontrar um menino que te pede dinheiro), em vez de lhe dar dinheiro perguntei: “Como está, onde você mora, por que pede esmola?”, e enquanto conversava com ele, eu olhava dentro dos seus olhos, como eu aprendera a fazer com Ana, e assim me veio a vontade de lhe dizer: “Venha à minha casa”. A partir de duas ou três coisas simplicíssimas como essa nasceu uma obra.
Aquele menino veio à minha casa; enquanto estava sentado à mesa, eu o olhava fixo nos olhos e estava claro que aquilo acontecia por causa de Cristo, ou melhor, era o fato de Cristo que ali acontecia daquele jeito. Depois passei a observar os meus filhos, também eles à mesa, um pouco assustados com mais essa “estranheza” do pai.
E fiquei maravilhado porque jamais os havia olhado assim. Aquele olhar mais puro do que o costumeiro, ao qual o Mistério reconhecido naquele menino me havia como que obrigado, se estendeu também para os meus filhos, e eu os olhava não mais como simples pai, mas como criatura para criatura, como filho atraído pelo Mistério. Eu nunca tinha me sentido tão pai como naquele momento.
Aventura humana
E a mesma coisa aconteceu a outros amigos, sobretudo a uma outra família com a qual agora moramos na Casa de Acolhida. Porque não podemos viver sozinhos uma coisa assim tão grande, nem na excepcionalidade. Com essa família e com alguns outros amigos nasceu uma preferência, não porque nos escolhemos, mas porque todos desejávamos seguir a aventura do conhecimento e do amor a Cristo, ao Mistério que faz as coisas, como nos havia ensinado a relação com Ana, cada um com o seu sim; alguns, como os meus filhos, só com o “por que não?”. Minha filha nos introduziu numa aventura humana que não terminou com a sua morte. Talvez por isso, quando morreu, uma amiga nos escreveu: “Agora é como se uma nova maternidade e uma nova paternidade os aguardasse”.
Essa preferência começou a ser como que um milagre que enche a vida de gratidão e de alegria, e por isso o que nasceu é só por gratidão a como o Mistério se fez conhecer através do olhar de padre Giussani para nós e para nossa filha. Só por causa dessa atração é que deixamos as nossas casas e fomos construir uma casa, que hoje é um vilarejo: Casa de Acolhida.
Dentro da cotidianidade
Agora na Casa de Acolhida de Pádua vivem conosco 13 meninos e outros 30/40 são acompanhados durante o dia. Meninos que, em grande parte, não têm uma família em condição de educá-los, ou têm uma família que se tornou impotente pela situação difícil na qual o filho se envolveu. Nós os acolhemos como são, dentro da normalidade do nosso dia a dia, vivido não só na Casa de Acolhida, mas também no trabalho cotidiano que alguns de nós ainda mantêm.
Lendo a carta que no ano passado padre Giussani enviou a cada um de nós da Fraternidade, entendemos que os filhos, nossos ou dos outros, nos foram dados para que façamos a experiência do Ser, que pede para “ser reconhecido” dentro da carne deles. A experiência na Casa de Acolhida é como se o Ser, o Mistério, nos pedisse que Lhe façamos companhia, porque ainda não foi reconhecido pela criatura que acolhemos e, ao mesmo tempo, que façamos companhia à criatura que ainda não sabe reconhecê-Lo. Entendi isso quando um dos rapazes mais rebeldes nos disse, no dia do seu aniversário: “Nestes anos já aprontei bastante, mas vocês sempre estavam presentes”.
Assim, tanto a alegria que nasce quando percebemos um passo, ainda que tímido, por parte deles, rumo ao bem, quanto a dor e a ferida de um “não”, são o terreno fértil em que cresce o amor a Cristo, em que cresce o “Tu” ao Mistério. E assim toda vez é um novo início.
Caridade: método de conhecimento
A caridade, então, torna-se método de conhecimento, porque se trato o outro na caridade, o outro se torna para mim fonte contínua de descoberta do Mistério, de Jesus. Exatamente porque é essa fonte inesgotável de conhecimento, esse menino que está ali e quase me deixa louco, justamente ele, ali, naquele momento, é tudo para mim. Então, diante de um menino a primeira pergunta não é mais: “O que posso fazer por você?”, mas “Quem é você para mim?”.
Tudo isso custa sacrifício, porque coloca a própria vida não como a medida das coisas, e afastar-se da própria medida (que é, em todo caso, a sepultura da vida e dos relacionamentos) é um grande trabalho. A Casa de Acolhida, antes de ser uma obra de caridade, é para mim o desejo de permanecer nessa experiência do olhar, que vi pela primeira vez no padre Giussani com Ana no hospital. Tudo isso é fonte de humanidade nova, que não censura nada. Alguns poderiam continuar delinquentes ou infratores pelo resto da vida, mas é um fato que em sua vida alguém os tratou não pelo mal que carregam dentro de si, mas pelo bem que se afirma neles.
E que bem é esse? É o reconhecimento de que o outro – chame-se Marcos ou Daniel, meu filho – é sinal do Mistério para mim.
Por que, então, não começar a tratar assim as coisas, pelo positivo que têm? Claro, às vezes é preciso entrar na natureza sofredora para descobrir esse positivo, porque é preciso atravessar, não saltar, não fingir que o mal não existe, não fingir que ele não roubou em casa, não fingir que ele não aprontou demais; é preciso atravessar, que quer dizer fazer uma estrada por dentro; e andar por dentro é doloroso, é um sacrifício.
O reconhecimento do limite
É o reconhecimento de um bem que faz disparar a centelha de uma nova relação. Como aquele menino que nos escreveu: “Aqui encontrei pessoas dispostas a me escutar, e para mim isso foi uma novidade, porque nunca conheci ninguém que se interessasse em me ouvir; só encontrei pessoas prontas a me acusar e dizer sempre que a culpa era minha”.
Assim, alguém vai embora daqui não porque aprontou demais, mas porque a nossa pobre humanidade não aguentou. Por isso, o amor a Cristo passa pela oferta da nossa impotência, que se torna prece: “Senhor, ajuda-o Tu!”, como frequentemente acontece com os filhos, com a esposa. Assim, esta obra de caridade se torna o lugar de reconhecimento do meu limite, do qual jamais tive tanta consciência como agora, mas que não me amedronta mais.
Na caridade se vive mais agudamente o sentido do próprio limite, porque a atração por Jesus arrasta consigo tudo de mim, não devo censurar nada, é uma ferida que permanece dentro do amor, e quando observo o Mistério que vive no Marcos, no Toninho... o observo com essa ferida que me abre o caminho à obediência: “A dor é um modo de olhar Cristo”, diz padre Giussani.
Num instante o Mistério
Vittadini dizia, numa conversa conosco: “Algumas vezes não basta a duração de uma vida para ver como o Mistério é bom”, e eu, maravilhado e confortado com essas palavras, pensei: “Mas basta a duração de um instante para reconhecer que o Mistério está todo naquela pessoa ali, naquele rapaz que continua a dizer-me não”. Essa é a liberdade que eu desejo que irrompa no meu dia a dia.
É uma humanidade que muitos dos que se envolvem conosco começam a apreciar. Um empresário nos disse: “É a primeira vez que vejo uma obra com meninos problemáticos onde não há assistencialismo porque são assim; para vocês, estes meninos não são um problema, mas um recurso, e então a coisa interessa também a mim, como empresário”. E com outros empresários criou uma pequena empresa para dar trabalho aos nossos meninos mais difíceis e que não encontram logo emprego fora. Se a Casa de Acolhida é uma obra de caridade, creio que o seja porque a primeira caridade é a educação.#RetrospectivaPassos