Sociedade. Para que serve o meu trabalho?

Crises, precariedade, desemprego. Num cenário que muda depressa, a luta para encontrar o próprio lugar abre mil perguntas, até para quem já tem um emprego. O que aprender de um desafio como esse? Fala Giorgio Vittadini (de Passos n.189, março de 2017)
Paolo Perego

Quais são os critérios para escolher um trabalho? O que fazer quando não se está satisfeito com a própria ocupação? Podemos aceitar um emprego que não nos agrada? Por quanto? E aspirações, desejos e ambições, que peso têm? Como conciliar família e carreira?
“Perguntas que costumam ser feitas a mim principalmente por jovens, mas que afetam a todos, inclusive quem trabalha há anos: são o indicativo de uma situação que se torna cada vez mais premente”, diz Giorgio Vittadini, presidente da Fundação para a Subsidiariedade e professor de Estatística metodológica na Universidade de Milão Bicocca, com anos de pesquisa sobre o tema. A realidade fala de precariedade difusa, de salários reduzidos, de grande competitividade, de subemprego e desemprego preocupantes. Mas também de um tempo cada vez maior dedicado ao trabalho. Há também os números da crise, que no Brasil levaram a uma taxa de desemprego de 12%, que sobe a 30% na faixa etária entre 18 e 29 anos. E um futuro nebuloso. “Num panorama como esse, em contínua mutação e pleno de incertezas, o risco maior é nos sentirmos esmagados”.

Partamos desse contexto, então. O senhor elaborou estudos sobre o capital humano e sobre as mudanças que afetaram a relação entre o trabalho e a pessoa. O que está em jogo?
Um conceito, antes de tudo. Ou melhor, o início de uma luta entre duas concepções. A primeira concebe o trabalho como algo onicompreensivo, que carrega em si mesmo o próprio significado, e por isso você é o trabalho, a sua carreira, sem uma identidade sua, oprimido, funcional à empresa. E sem ideais, determinado apenas a alcançar um ganho individual. Antes da crise, parecia que o bem-estar coletivo podia nascer só dessa ausência de valores, desse egoísmo do indivíduo, como na fábula oitocentista das abelhas, de Bernard de Mandeville. No entanto, vimos na crise financeira que isso acarreta frequentemente efeitos perversos, inclusive para a pessoa normal, que obteve sucesso. Talvez ele tenha sacrificado tudo pela carreira, mas quando esta se revela madrasta e o esmaga, alguém com 45 anos se sente esgotado, deprimido, porque sempre esteve convicto de que só tem valor quem é bem-sucedido.

Giorgio Vittadini

Mas muitos parecem fugir do trabalho, trabalham mal...
É a mesma concepção, às avessas. A pessoa pensa que a vida está em outro lugar, fora do trabalho. Ceder a essa lógica significa fechar-se na paróquia, no sindicato, na família, nos hobbies, em outras coisas. Pensando que a empresa é uma espécie de vaca a ser ordenhada: pego o meu salário, faço o mínimo de viagens, e digo: “minha cara empresa, o teu destino não é o meu”. Também neste caso somos desumanos, divididos, alienados como quem concebe a carreira como o único ideal.

Qual é, então, a concepção alternativa?
Há cada vez mais evidências empíricas que mostram que é preciso recuperar, no trabalho, aspectos ligados à pessoa em sua originalidade: estabilidade emotiva, amizade, abertura para a experiência, para citar apenas alguns aspectos. Muitos estudiosos de recursos humanos e economistas – in primis James Heckman, Prêmio Nobel de Economia – já perceberam que a produtividade no trabalho muitas vezes se conjuga com esses aspectos. Há alguns dias, um professor de Finanças de Denver me escreveu a esse respeito, dizendo-me que ultimamente começam a ganhar espaço, de maneira inédita, teorias que mostram que o background educacional e cultural, a idade e os traços do caráter contribuem para explicar algumas variáveis também no seu mundo. A pergunta, então, é se a “pessoa” tem a ver ou não com um resultado econômico, se faz a diferença.

E o senhor como responde?
Tem tudo a ver! E estamos percebendo isso cada vez mais. Começou-se a redescobrir que até os grandes empreendedores não são tubarões bem-sucedidos, mas pessoas que partem de “algo diferente”.

Por exemplo...
Pensemos no mito laico de Steve Jobs, que vai a Stanford de chinelo de dedo, sem ter concluído o curso e tendo estudado só caligrafia. A sua grande contribuição, mais que do tipo informático, foi do tipo comunicativo: intuiu que diante da tela estava uma pessoa, na maioria dos casos com poucos conhecimentos técnicos. Ele se identificou com essa pessoa e inventou objetos de uso simples, como o Mac, o iPhone, o iPad... Todos os grandes gênios empresariais são pessoas assim. Um manager pode se contentar em administrar, mas um empreendedor que inventa e desenvolve um novo produto precisa ter genialidade humana, capacidade de intuir a necessidade das pessoas, entender quais podem ser os pontos positivos de fuga da realidade. O “gênio do humano” está também na origem do desenvolvimento econômico. Uma expressão de Saint-Exupéry diz que para se construir o navio não basta juntar mão de obra, materiais, projeto: é preciso ter o senso do infinito do mar. A pesquisa sobre character skills (habilidades de caráter) nos leva a refletir sobre esses aspectos. Infelizmente, muitos daqueles que começam a reconhecer os efeitos positivos das habilidades não cognitivas sobre o trabalho pensam que se trata só de novos mecanismos do homem.



Em que sentido?
Pense na ideia do trabalho em equipe, a nova técnica de formação gerencial. Acredita-se que para formar a criatividade de uma pessoa e torná-la capaz de estar pronta para a mudança seria preciso colocá-la em condições extremas, nas quais possa desenvolver reações igualmente extremas: reencontrar o abrigo de noite no meio da floresta, fazer rafting... Ao invés disso, é preciso que descubra o seu coração, a sua razão, a sua capacidade de ler a realidade, o gosto pela liberdade, o desejo de uma felicidade plena e integral. É “algo diferente” que não pode ser induzido através de novos procedimentos. “Algo que vem antes” do trabalho, que “nasce” fora da empresa, que não pertence à empresa. E isso, em geral, é um escândalo.

Por quê?
Como dizia antes, normalmente prevalece o pensamento de que ninguém pode lhe ser útil se você não for o patrão dele. Mas é o oposto disso. Justamente porque a pessoa precisa ser livre para poder servi-lo melhor. Sob o império romano, os primeiros cristãos jamais questionaram o poder. Simplesmente diziam: “Eu não lhe pertenço”. Podiam ser soldados, mas sem incensar o imperador. Santos como Nabor, Felício, Gervásio e Protásio foram mortos por causa disso. Aqui é a mesma coisa. O desafio é que eu só posso servir a empresa, ajudá-la e trabalhar, se antes eu me sentir livre. Mas o que se ouve é: “Não, eu quero tudo”.

Mas o que é esse “algo que vem antes”?
É o coração da pessoa. É isso que a faz desejar alguém ou alguma coisa que responda à sua necessidade de felicidade, de justiça, de beleza. É isso que faz você desejar um sentido naquilo que realiza, é a sua personalidade em sua origem profunda.

O que é essa origem?
O coração do trabalho é um amor por aquilo que se tem diante de si, pela condição do trabalho, mesmo que difícil. Por que há pessoas que fazem trabalhos humildes e estão sempre alegres? Antes de tudo porque sabem que, com o próprio trabalho, com o salário que recebem, podem sustentar alguém que amam. Penso naquelas pessoas que emigravam para ir trabalhar numa mina, gente que amava a família e que provavelmente a deixava para ir trabalhar no exterior. Todos os dias debaixo de quilômetros de terra. Uma vida perigosa, para mandar dinheiro para casa. O amor dava sentido a tudo isso. E também o gosto de contribuir com o próprio esforço para o bem-estar do próprio povo. E ainda a percepção, mesmo num trabalho humilde, de que se está transformando a realidade para torná-la melhor.

Então o problema é que não há mais essa consciência?
Dizer assim é defensivo. É um passo para se dizer que não há mais nada. É preciso ir atrás desses exemplos. Vê-los. Gente de boa vontade que, sem um “antes” e um “depois”, talvez nem saiba por que, mas aquele pedaço de realidade que tem diante de si é levado a sério. Quantos cuidadores trabalham demais para mandar o dinheiro para a família? Amam alguém e esse amor dá sentido ao que fazem. O mesmo vale para muitos imigrantes. Na noite de Natal encontrei um jovem que vende flores nas ruas de Milão. É um serviço trabalhoso, difícil viver disso; economiza na comida, porque mantém os seus em Bangladesh. Tinha um trabalho fixo, mas ficou desempregado; vê-lo vendendo flores dá uma ideia de amor ao trabalho, porque está ligado a uma afeição. É uma prioridade diferente, mas que muda a circunstância.

Mas são casos-limite...
Não, muita gente ama o próprio trabalho. Jovens que querem incidir sobre a realidade e construir um futuro para si, para a nação a que pertencem, ou talvez emigrando. Mães que querem cuidar da família e trabalhar fora. Professores que continuam a educar em escolas degradadas. Gente que gosta de aprender um ofício ou de descobrir as oportunidades – não contra, mas pelo homem – das novíssimas tecnologias. Trabalhadores e empresários que fazem de tudo para salvar uma fábrica ou criar empregos. Gente que trabalha com paixão, mesmo tendo contratos temporários.

Como é viver de modo humano o trabalho?
Penso que é preciso lembrar os três critérios de que Dom Giussani fala a propósito da vocação. Antes de tudo, a pessoa só pode partir do seu coração, do seu desejo, das suas aspirações, das suas paixões, dos seus talentos. Hoje em geral não se olha para isso, porque a pessoa não confia em si mesma, não percebe que tem um coração no qual há algo belo. A inclinação pessoal, ao invés, é um dom. Para entender se essas inclinações podem se realizar só há um modo, que é o segundo critério: verificar, a partir dos sinais do real, se podem ser realizadas tal como são ou se precisam ser modificadas tomando por base as sugestões da realidade. Descobrindo, também, que essas mudanças de rota não são uma perda para a realização de si, mas só um esclarecimento do caminho a seguir. Há alguns anos, havia moças que, talvez após a morte dos pais, não se casavam, paravam de estudar e iam trabalhar para sustentar os irmãozinhos. Isso pode acontecer muitas vezes na vida, até em situações mais complicadas. E, terceiro, não é preciso demonizar, mas valorizar aqueles que, olhando para o que acontece à sua volta, decidem colocar-se à disposição para servir a realidade em suas necessidades mais evidentes: por exemplo, fazer o trabalho de médico ou enfermeiro para aliviar as necessidades dos doentes, ou de professor, ou dedicar-se aos pobres... E fazendo isso, se realiza.

Portanto, algo bem diferente do que uma questão de balança ou calculadora...
Sim. É preciso educar a pessoa para que reconheça as próprias inclinações, para que obedeça a realidade, para que se movimente com gratuidade. Tenho em mente exemplos como a Associação Cometa em Como, e Piazza dei Mestieri em Turim, e outras realidades que ensinam um ofício: confeiteiro, esteticista, carpinteiro... O que fazem os jovens desses ambientes? Guiados, metem a mão na massa, experimentam. E começam a descobrir que podem amar o que fazem. Não só lhes ensinando a técnica, mas levando-os a se apaixonar pelo trabalho. É preciso alguém que diga: “Experimente, olhe, faça, desfaça”. Que leve o outro a descobrir o próprio coração. O trabalho “se perde” porque a pessoa perdeu o coração. E, portanto, a capacidade de construir, que tem dentro de si. Se se recupera o coração, recupera-se uma pista para trabalhar.

Em suma, precisamos de testemunhas. Mas quem?
Precisamos de pessoas que dão a vida para que um outro viva. “Não há maior sacrifício do que dar a vida pela obra de um outro”. Gente que no trabalho cotidiano goste do que faz e leve outros a também gostar, ensinando técnicas e vontade de trabalhar, quaisquer que sejam as condições em que se encontra.

E a fé, o que acrescenta?
Quando eu comecei a trabalhar, me mostraram um quadro e, escondida atrás dele, uma cruz. Como a dizer: “Viu? Ninguém a retira, mas aqui não é preciso vê-la”. Percebi que a fé não era uma pertença ideológica a ser escondida ou ostentada. Era Alguém que me fazia companhia. Ele dialogou com o meu coração, como presença invisível sempre próximo de mim, esculpido nos rostos da comunidade cristã na qual se encarnou e que me corrigiram, inspiraram, aconselharam e, sobretudo, ensinaram a reconhecê-Lo comigo. Que ajuda para viver o trabalho de um modo mais humano!