Babette. “As estrelas estão mais próximas...”

Uma resenha do livro "A festa de Babette", da dinamarquesa Karen Blixen. Sugestão de leitura para esse período
Eliandro Silva

Em janeiro de 1988, Dom Giussani disse aos universitários: “A obediência no uso dos instrumentos é um teste da verdade da imanência à companhia. [...] Um dos maiores instrumentos do poder é fazer com que as pessoas não leiam, não permitir que as pessoas se comparem com algo verdadeiro”.
Para favorecer essa experiência de comparação – e portanto de juízo – sugerimos para o bimestre Dezembro/21-Janeiro/22 a leitura do livro "A festa de Babette", de Karen Blixen. A seguir a resenha do livro, publicada também na Revista Passos de dezembro/21.


Quem se acerca da obra de Blixen, A festa de Babette – escrita em 1958 e adaptada para o cinema em 1987 –, pode achar que seja uma empreitada fácil, afinal “é um livro pequeninho” como me disseram e, de fato, o é! Mas, ao mesmo tempo, a obra é densa e profunda, assim como é denso e profundo o mundo no qual arrastamos nossos desejos, sonhos e, também, nossas frustrações e limites.
A história se passa em Berlevaag, na Noruega, um microcosmo onde seus habitantes – seguindo os preceitos da seita de convicção luterana fundada por um deão – rejeitaram todas as futilidades e prazeres do mundo externo para poder se dedicar a uma vida austera a caminho da pátria celeste. O ambiente estoico, consequentemente, espartano ao extremo, só não é mais sombrio graças à elegância e requinte da escrita de Karen Blixen.
Os personagens – quer moradores de Berlevaag, quer visitantes que por lá andarilham – são profundamente marcados por escolhas feitas no passado, beirando a melancolia. Podemos citar a escolha das irmãs Martine e Philippa que, à moda de perpétuas vestais romanas, renunciam ao amor para se dedicarem à obra do pai deão.

Cena do filme ''A festa de Babette'', de 1987.

Nesse ambiente sombrio, surge a figura de Babette que, fugindo da Comuna de Paris, encontrará refúgio e asilo na casa das irmãs. Babette é quase uma entidade de quem não se sabe praticamente nada. Discreta, ela servirá humildemente a casa que lhe dera albergue, mas os efeitos de seu serviço serão sentidos por todos os habitantes da pequena comunidade já em processo de extinção. No fim, Babette tem uma surpresa e com isso alterará a vida de cada um.
Como entrada, nos deparamos imediatamente com a questão da liberdade: Martine e Philippa escolhem não corresponder ao amor de Lorens Loewenhielm e Achille Papin para serem a mão direita e a mão esquerda de seu pai, o deão. Não nos apressemos em apedrejá-las por essa escolha, visto que somos filhos de uma cultura em que o instinto foi elevado à categoria de juízo. É lógico que, por outro lado, uma escolha que negue um aspecto da realidade pode não ser uma escolha condizente com a estatura do nosso coração, que anseia por encontrar algo que o satisfaça plenamente, e é respondendo às circunstâncias que podemos fazer a verificação do que nos corresponde.

A grande questão que se impõe é: na nossa experiência, caminhando por esse vasto mundo, encontramos algo que corresponda ao desejo infinito de realização humana que pulsa em nossas veias, mesmo quando estamos distraídos? Tem razão padre Julián Carrón ao afirmar que “se não pertencemos ao deserto, é pela graça que recebemos, pela graça do carisma dado pelo Espírito Santo a Dom Giussani em função de toda a Igreja, ou seja, pela forma que Cristo escolheu para nos atrair a Si, para estabelecer uma relação persuasiva conosco” (J. Carrón, “Nenhum dom de graça vos falta”, Passos-Litterae Communionis, out. 2021, p.21).
De qualquer forma, é um problema que cada um deverá se colocar pessoalmente. “Aquilo que cada homem tem o direito e o dever de aprender é a possibilidade e o hábito de comparar cada proposta com essa sua experiência elementar, com o coração” (L. Giussani, O senso religioso, Jundiaí: Paco Editorial, 2017, p. 23).

Mas vamos ao prato principal, antes que esfrie! Babette se torna uma presença para todos os moradores de Berlevaag, e “sob seus olhos, as coisas se moviam, sem fazer ruído, para o lugar apropriado” (Karen Blixen, A festa de Babette, São Paulo: SESI-SP, 2018, p. 20), tendo incidência não só na casa em que habita, mas em toda a comunidade. Como é verdade que “a autoridade é um ser, não uma fonte de discursos. O discurso também é parte da consistência do ser, mas somente como reflexo” (J. Carrón, “Nenhum dom de graça vos falta”, op. cit., p. 32). A autoridade verdadeira somente se pode reconhecer.
Chega, então, a ocasião de se celebrar o centenário do fundador da seita. A comunidade atravessa momento de grandes dificuldades, pois – sem a figura do fundador – os fiéis já no final de sua peregrinação terrena, veem aflorar pecados e rivalidades que voltam do passado para abalar os relacionamentos como feridas purulentas. Para piorar a situação, Babette recebe um prêmio e resolve – talvez por gratidão àquela família que lhe acolhera – oferecer o jantar para festejar o centenário do deão.
O jantar nos faz mergulhar na categoria do acontecimento: um fato impensado, imprevisível, mas que carrega uma novidade...e a novidade gera mudanças! Os convivas, mesmo tendo feito um pacto de não se deixar tocar pelos pratos que Babette lhes preparara, não podem se desvencilhar da objetividade do real, pois a realidade se impõe. Como em um passe de mágica, fazem uma experiência de unidade e paz ao invés do sentimento de rancor e frustração que até então tinha sido o pão cotidiano de suas experiências humanas, pois “As vãs ilusões deste mundo haviam se desmanchado diante de seus olhos como fumaça e viram o universo como realmente é” (Karen Blixen, A festa de Babette, op. cit., p. 48.). Em outras palavras, puderam ver que a realidade é positiva e atraente.
E isto é a fé: um acontecimento que irrompe na experiência e que permite um juízo novo sobre a realidade, que permite ver que “as estrelas estão mais próximas” (Ibidem, p. 49). Ou seja, gera um ímpeto de vida que possibilita abraçar com ternura o passado e o presente, isto é, a história pessoal com suas escolhas acertadas ou equivocadas.

Como sobremesa, é preciso verificar na própria experiência se é verdade as palavras de Carrón: “Foi isto o que nos agarrou pelas entranhas, que nos impediu de ir embora como tantos outros: um ímpeto de vida, uma maneira de conceber, de viver e de propor o cristianismo que nos entusiasmou, e que demonstrou a razoabilidade e a persuasão da fé, um caminho para a mudança de si. O carisma é o modo que Cristo escolheu para estabelecer uma relação significativa conosco, para nos atrair, para tornar existencialmente experimentável nossa pertença a Ele na Igreja de Deus: não em outro mundo, mas neste mundo, tal como é, com todos os seus desafios e tensões, ‘na era da incerteza’, navegando nas águas turbulentas do nosso tempo” (J. Carrón, “Nenhum dom de graça vos falta”, op. cit., p. 14).
Bem, temos que ficar por aqui, para que a resenha não fique maior que o livro. Boa leitura!