O infinito no cotidiano

Uma leitura de Clarice Lispector como sugestão de leitura do bimestre março e abril.
Viviane Belga

Hoje não lembro mais que obra era, mas não me esqueço do impacto que foi me reconhecer nas palavras daquelas páginas. Era como se a autora falasse do meu coração. Tanta dor, tanta alegria, tanta intensidade, tantas perguntas, tanto desejo. Tudo era um tanto. Lia com a avidez da criança que bebe, ofegante, um copo d’água, por insistência da mãe, num dia quente de verão, mas logo volta a brincar, pois não quer perder tempo. A escrita clariceana, ainda hoje, se insinua a mim como a representação de algo grande, imenso, que me convida a descobrir quem sou e me faz chegar mais perto da minha humanidade.

Esta edição (Ed. Rocco, 2020) é composta por 25 contos, com temáticas e ambientes variados, e, curiosamente, com a presença de muitas crianças como personagens. Já no primeiro conto, que tem o mesmo título do livro, o imprevisto chega através de uma mãe que salva a adolescente de uma rotineira e fatigosa busca. Aquilo que se configura como a grande espera e procura não vem de onde se presume, mas do inesperado, e é muito maior do que se pode imaginar. “A felicidade sempre iria ser clandestina para mim. Parece que eu já pressentia.”

A criança, como figura central na narrativa de muitos dos contos, é aquela que representa a novidade que chega, instaurando um novo jeito de ver o mundo e de viver. Os fatos cotidianos interpelam os personagens de modo profundo, de forma que a vida toma as dimensões do infinito. Somos convidados a reconhecer o sentido da nossa existência no miúdo da vida mesmo.

Os fatos narrados em Felicidade Clandestina poderiam ser vividos por qualquer um de nós. Ler e comparar com nossa vida é juntar os pedaços das nossas experiências e verificar se a partir delas aumentamos nossa estatura humana e, com isso, se vivemos mais em paz, mesmo com todo o drama que possa vir à nossa frente. Não é simplesmente uma prosa psicológica ou intimista. É a possibilidade de olhar para dentro e, em seguida, olhar cada vez mais e melhor para a realidade.

* Neste bimestre, o livro enviado aos assinantes da Entrepassos (o clube de leitura ligado à Revista Passos) coincide com a leitura sugerida para todo o Movimento.

* Viviane Belga é professora de português, redação e literatura, co-fundadora do Projeto Clickleitura (@clickleitura).

* Reserve a data: Sábado, 15 de abril às 17h, encontro sobre o livro num diálogo on-line.