Elogio da sede

Num mundo que exalta o atendimento imediato a todos os nossos impulsos e vontades (como se a vida fosse um imenso supermercado), muitas vezes deixamos de olhar para nossa sede real. Da Passos de jan-fev
Raúl Cesar Gouveia Fernandes

Elogio da sede reúne as meditações propostas por José Tolentino Mendonça durante o retiro de Quaresma pregado à Cúria Romana em 2018. O autor – sacerdote português que, na altura em que foi convidado pelo Papa para conduzir aquele retiro, já era reconhecido como importante professor universitário, poeta e ensaísta – foi criado Cardeal em 2019 e desde 2022 ocupa o posto de Prefeito do Dicastério para a Cultura e a Educação do Vaticano.
A breve biografia do autor, aqui resumida, ajuda a compreender a principal característica da obra: sua capacidade de explicitar o diálogo entre a fé e a cultura contemporânea, favorecendo a percepção de como o fato cristão representa uma resposta válida e adequada para o homem de hoje e para as circunstâncias concretas que ele está convidado a enfrentar. É por isso também que, ao longo de suas meditações, José Tolentino de Mendonça cita não apenas autores consagrados do pensamento católico, mas também diversas vozes menos comuns em obras do gênero, até mesmo de não cristãos, tais como Fernando Pessoa, Clarice Lispector e Eduardo Galeano, entre outros.

Como indica o título, o tema central das reflexões é a “sede”. O interesse do livro não provém, portanto, da suposta novidade de seu objeto: a sede, a carência e o desejo são, como sabemos, algo que caracteriza o homem desde sempre. Mas num mundo que exalta o atendimento imediato a todos os nossos impulsos e vontades (como se a vida fosse um imenso supermercado), muitas vezes deixamos de olhar para nossa sede real: vivemos, então, uma indiferença, “desvitalização” ou “ausência” de nós mesmos, fenômeno que se manifesta de múltiplas formas na cultura contemporânea. Acima de tudo, porém, como Dom Giussani ensinou, o enfraquecimento das exigências que nos constituem leva também ao esquecimento da razoabilidade da fé, que parece não responder mais ao nosso coração. Dessa forma, a primeira contribuição de José Tolentino Mendonça é ajudar-nos a resgatar a verdadeira dimensão de nossa sede: o desejo infinito e o desejo de infinito, nas palavras do autor.
Não é por acaso, pois, que o livro comece lembrando da necessidade de estarmos disponíveis para o “espanto”, que é o oposto de permanecer comodamente no terreno das coisas já sabidas e já conhecidas. E com efeito o primeiro capítulo já principia de modo surpreendente, pois, em vez de discorrer sobre o desejo que caracteriza o coração humano, é da sede de Jesus que ele parte, retomando o episódio do encontro com a samaritana, no qual é Ele mesmo quem roga: “dá-me de beber”. Jesus também tem sede do amor de cada um de nós, e pede humildemente uma resposta de nossa parte. Tudo começa com o amor de Deus, que vem ao nosso encontro.

Quantas vezes já ouvimos falar do desejo? Para quem acha que não há mais o que aprender sobre o assunto, Elogio da sede adverte que é preciso reconhecer nossa sede real, aquela que faz nosso coração pulsar nas experiências concretas da vida – e que o doloroso reconhecimento de nossa incompletude pode ser o ponto de partida para um relacionamento mais pessoal e autêntico com Cristo.
Dessa forma, outra qualidade do livro é ajudar o leitor a compreender que a sede é essencial para a caminhada na fé. Às vezes, pensamos que o desejo do coração não passa de uma espécie de “ponto de partida” (algo que nos aproxima de Cristo, mas que, depois do encontro, poderia ser considerado “resolvido”); outras vezes, como fomos lembrados no Dia de Início de Ano (encontro de CL realizado em set/23 com o tema: A fé, realização da razão), caímos na tentação de reduzir nossa experiência de fé apenas à dimensão natural das exigências do coração e do impacto da realidade sobre nosso eu, esquecendo que, por si, o senso religioso é incapaz de mudar a vida.
A leitura de Elogio da sede relembra-nos que a chama do desejo deve continuar a arder sempre, mas que não pode ser confundida com a experiência de fé. Das reflexões e dos exemplos propostos pelo autor, depreende-se que isso se justifica por duas razões: por um lado, porque é no encontro com Cristo que tomamos consciência da profundidade de nossas exigências e nos tornamos capazes de levá-las a sério, sem fugir de sua dramaticidade; e por outro lado porque, fora da lealdade conosco mesmos, com nossos anseios e limitações, a fé torna-se fria e formal como uma piedosa lembrança que já não é mais capaz de nos fascinar hoje.

Por fim, os últimos capítulos do livro nos lembram que o aguilhão do desejo é o que permite à Igreja permanecer “em saída”, aberta ao encontro com os outros e a suas necessidades, conforme o convite diversas vezes repetido pelo Papa Francisco. Ou seja: a fidelidade à sede que nos constitui é essencial também para que a fé se torne cultura. Damo-nos conta, assim, de que a questão do desejo são se resume a uma dimensão intimista ou meramente pessoal: a retomada de nossas exigências fundamentais é essencial para que, da experiência de encontro com Cristo, continuem a brotar aquela criatividade e aquela paixão pelo homem das quais nasceram tantas respostas novas para os desafios da vida concreta do homem nos últimos dois mil anos – respostas tão necessárias no mundo de hoje, repleto de desafios novos para os quais não conhecemos ainda as soluções.