A afirmação amorosa da realidade

Para o "livro do bimestre" deste período, leitura sugerida pelo Movimento como ferramenta educativa, foi escolhida a peça teatral do grande escritor pernambucano Ariano Suassuna
Eliandro Silva

«Auto da Compadecida! O julgamento de alguns canalhas, entre os quais um sacristão, um padre e um bispo, para o exercício da moralidade»1, anuncia o Palhaço a plenos pulmões, no começo da peça escrita por Suassuna em 1955.

A imagem do palhaço, que depois se declarará ser o próprio autor, é utilizada «para indicar que [o escritor] sabe, mais do que ninguém, que sua alma é um velho catre, cheio de insensatez e de solércia»2, quer dizer, entende que a experiência humana tem uma grande ferida. A peça, ainda segundo o autor, é «uma história altamente moral e um apelo à misericórdia», «porque sabe que, se fôssemos julgados pela justiça, toda a nação seria condenada»3.

O palhaço – sim, respeitável público, o palhaço – emblema do humor que impregna a obra através das figuras de linguagem, do sarcasmo em algumas ocasiões, das tiradas engraçadas... Mas esse humor não é um tique nervoso, uma reação psicológica. É um humor constante e diz respeito à letícia cristã que não significa ausência de dor, mas a consciência de que a realidade é positiva por causa de uma Presença e isso me torna livre diante das circunstâncias.

«Pensemos em João e André, em Pedro: desde que aquele homem entra no horizonte da vida deles, tudo o que faziam, todos os seus afetos, todos os seus afazeres cotidianos tinham nexo com Ele; quando O seguiam, nos lugares aonde Ele ia, já não havia espaço para nada mais no coração deles. Viram-No na cruz e depois ressuscitado. Imaginemos quando ficaram diante da morte da mãe deles ou de uma pessoa querida: mantinham-se toda a concretude da dor humana, mantinham-se todas as lágrimas, conforme os temperamentos, mas havia neles algo invencível, que era a letícia, pois levavam nos olhos aquele Homem morto e ressuscitado, já não podiam extirpá-Lo dos olhos com que olhavam para tudo.»4

Passaram-se quase 70 anos da publicação do Auto da Compadecida e podemos ver o quanto o olhar que Suassuna tinha da sociedade no sertão de Pernambuco pode ser o mesmo olhar que temos em nossa sociedade e até em nossas casas, quando «houverem os homens esquecido todos os deuses, exceto a Usura, a Luxúria e o Poder»,5 diria Eliot. Com efeito, no primeiro ato, todos os relacionamentos são permeados por insensatez e solércia: cobiça e avareza se verificam não somente na relação das instituições com o povo, mas entre amigos, no próprio relacionamento marido e mulher, visto a relação entre o padeiro e sua esposa.

O ponto de partida da trama – a morte do cachorro da mulher do padeiro – vai se complicando à medida em que vão entrando em cena os interesses pessoais, a ponto de até a lei e a justiça – representadas aqui pelas citações ao Código do Direito Canônico – serem manipuladas e adulteradas ao sabor das conveniências pessoais. Outro elemento que vem para complicar a situação é a chegada de Severino, cangaceiro, na cidade. A carnificina que ele e seu capataz Cajugaceiro promovem na cidade ressalta a pusilanimidade que todos podemos experimentar.

Quando, finalmente, todos se encontram diante do juízo final – segundo o senhor Demônio «a hora da verdade»,6 em que o politicamente correto é posto de lado de maneira direta e jocosa como, por exemplo, a cor de Manuel e o comentário do Encourado a respeito da condição feminina de Nossa Senhora («Mulher em tudo se mete»7) – nos oferece vários pontos de reflexão.

A primeira observação é que o que é dramático, diria dom Giussani, «é que exatamente as nossas próprias misérias não são mais cristãs [...]. A grande questão é que o homem é originalmente ferido. As misérias serem cristãs significa, fundamentalmente, que as nossas misérias tenham consciência de si mesmas como nascidas do pecado original, dessa ferida mortal».8 Podemos ver que, diante de Manuel, todos procuram justificar suas atitudes em vida.

As justificativas só revelam o medo de ser condenado. Porém, continua Dom Giussani, «a consciência de sermos pecadores implica o olhar amoroso de uma presença».9 Essa presença amorosa se torna visível na figura de Nossa Senhora, aquela que se compadece de todos. Assim João Grilo, que depois será seguido por todos os outros, não aceita ir para o inferno simplesmente baseado nas acusações do Encourado, mas exigirá um julgamento e apelará para a Compadecida.

Só diante de uma Presença o homem, finalmente, pode reconhecer que sua existência sobre a Terra carrega uma ferida, como o medo da morte, medo do sofrimento, medo da fome, o medo terrível da solidão que até o próprio Cristo experimentou no Horto das Oliveiras. Uma ferida que tentamos esconder.

A volta de João Grilo à vida, a sua segunda chance de salvação, – desfecho já previsto por Manuel – é uma indicação clara de que tudo é encaminhado para um destino bom [a misericórdia] cada ação do cotidiano, cada instante efêmero e passageiro concorre para o bem. A figura discreta do frade «a quem todos tratam com desprezo mal disfarçado, é a alegria e bondade em pessoa»,10 é uma deixa de que o homem não necessariamente precisa ser acorrentado aos seus limites e pode viver essa tensão a esse destino bom.

E como podemos não ficar petrificados diante da medusa dos nossos erros e limites? No Dia de Início de Ano, no último dia 25 de setembro, Carrón salientou que «assim como os discípulos no barco, nós também ficamos surpresos pelo fato de que quanto mais forte é a tempestade, e apesar de todos os nossos limites, mais emerge a excepcionalidade incomparável de Cristo e a afeição a Ele que o acontecimento do carisma doado a Dom Giussani inoculou no nosso sangue».11

Há alguns anos um amigo me disse: «a moralidade para nós não é não pecar, mas levantar-se continuamente». Por isso a Igreja Católica acaba o Tempo Comum – normalmente no final do mês de novembro – com a Solenidade de Cristo Rei: toda a história será julgada afirmando o juízo de Cristo que vence. Cristo como o senhor de tudo! O juízo não é listar e apontar os erros como faz o Encourado, mas uma afirmação positiva do real.

«A realidade presente de Cristo é também a única fonte de paz. Só uma presença capaz de responder ao conjunto das nossas incertezas – sobre a morte, o sofrimento, o mal, o futuro – pode trazer paz à nossa vida, transferindo a atenção de nós para Ele, e então para os outros. Sem presença, não se enraíza dentro de nós a esperança que não decepciona. O que és Tu, ó Cristo, para nós? A segurança da nossa esperança.»12

Notas

1 A. Suassuna, Auto da Compadecida, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2018, p. 23.
2 Ibidem, p. 24.
3 Ibidem, p. 25.
4 J. Carrón, Há esperança? O fascínio da descoberta, São Paulo: Companhia Ilimitada, 2021, pp. 169-170.
5 T. S. Eliot, Poesia, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981, p. 189.
6 A. Suassuna, A. Suassuna, Auto da Compadecida, op. cit., p. 132.
7 Ibidem, p. 160.
8 L. Giussani, “Qui salvandos salvas gratis. A propósito de perdão”, Litterae Communionis, n. 56, mar-abr. 1997.
9 Ibidem.
10 A. Suassuna, Auto da Compadecida, op. cit., pp. 71-72.
11 J. Carrón, “Nenhum dom de graça vos falta”, Passos - Litterae Communionis, n. 240, out. 2021, p. 20.
12 J. Carrón, Há esperança?, op. cit., p. 181.