O Senhor do Mundo

Como leitura para fevereiro e março, sugerimos o romance de Robert Hugh Benson sobre o fim dos tempos, escrito em 1907. «Mais do que apontar os desvios da mentalidade dominante, a obra nos convida a depositar a esperança em Cristo»
Raúl Cesar Gouveia Fernandes

Imensas máquinas voadoras cruzam o céu, transportando centenas de passageiros; embaixo, iluminados por luz solar artificial, habitantes das metrópoles vivem em moradias subterrâneas, construídas para contornar a falta de espaço na superfície. Painéis elétricos divulgam ao redor do planeta as principais notícias do dia. O mundo está dividido em apenas três grandes blocos políticos; os países do Velho Mundo, reunidos sob um Parlamento Europeu, buscam saída para o iminente conflito com o Oriente, que se prenuncia catastrófico.

Tal é o cenário com que nos deparamos nas primeiras páginas de O Senhor do Mundo, intrigante livro de ficção científica publicado em 1907, que narra acontecimentos de cem anos no futuro – ou seja, de nossos dias. Trata-se de obra originalíssima, que precede o Admirável mundo novo e o 1984, os maiores clássicos do gênero. E assim como eles, O Senhor do Mundo não deve ser lido em busca de previsões históricas ou de descrições sobre avanços científicos: na verdade, os autores de ficção científica tratam sobretudo de questões polêmicas de seu presente, projetando-as para o futuro hipotético. No caso de Benson, um sacerdote inglês convertido do anglicanismo, sua intenção é apresentar o resultado trágico do desenvolvimento de tendências culturais, religiosas e políticas profundamente anticristãs que começavam a lançar raízes no início do século passado.

A primeira característica que salta à vista no mundo criado por Benson é a forte presença de um pensamento único que se impõe de maneira sutil, porém eficaz, à consciência de todos. Resultado da convergência de influxos variados, este ideário se consubstancia numa verdadeira doutrina que, assumindo ares de nova religião universal, não tolera dissenso.
Segundo tal princípio, apelidado de humanitarismo na obra, a libertação do homem seria resultado do abandono das antigas superstições (credos ou religiões) que impediam o progresso social e científico dos povos. Em seu lugar deveria emergir nova espécie de panteísmo, traduzido no culto à própria humanidade.

Como nos dias de hoje, o pensamento único descrito por Benson promove curiosa aliança entre o mais agudo relativismo (pois, em síntese, todos os princípios devem ser submetidos ao escrutínio da maioria) e a feroz intransigência contra tudo que escape ao consenso. Sob o manto do suave discurso da tolerância, com efeito, esconde-se frequentemente uma vigorosa resistência a qualquer certeza. Num mundo assim, a última voz que resiste à homologação, o único inimigo a ser combatido é o cristianismo.
Desenvolvendo tais pressupostos até as últimas consequências, O Senhor do Mundo pinta um quadro assustador, em que os cristãos, reduzidos a pequena e tímida minoria, voltam a ser perseguidos.

Chegamos, assim, ao tema central da obra: O Senhor do Mundo é um romance sobre o fim dos tempos. Essenciais, a fim de bem compreender este aspecto, são as chaves de leitura que o leitor atento encontrará no prólogo do livro, mas sobretudo o seu denso e enigmático capítulo final. Fortemente calcado nos relatos bíblicos do Apocalipse, o desfecho se presta a diferentes leituras e convida à revisão de toda interpretação literal que pode ser dada aos títulos das três partes que compõem o texto: “O Advento”, “O Encontro” e “A Vitória”.

Em trama ágil que prende a atenção dos leitores desde o início, Benson não se furta a polêmicas, disparando acusações politicamente incorretíssimas e incômodas para a sensibilidade atual, dirigidas a todos os que considerava responsáveis por favorecer as sementes do que ele chamou pejorativamente de “modernismo”.

O Senhor do Mundo é, portanto, um livro radical, que não faz concessões: trata-se de obra desconcertante, cuja leitura provocará admiração ou repúdio, mas nunca indiferença. Se sua contundência compele o leitor a tomar consciência de seus próprios juízos e ideias, algo similar acontece com os personagens, que também são obrigados a tomar partido diante das questões cruciais da existência. Com efeito, em quadra tão decisiva como a retratada no romance (não percamos de vista o caráter escatológico da obra), “os segredos dos corações serão revelados”, isto é, as decisões mais sutis da liberdade pessoal forçosamente virão à tona.

Ao recorrer a tais extremos, o autor desejava sublinhar a emergência do confronto entre a mentalidade comum e a tradição cristã. Neste contexto, adverte Benson, não há espaço para neutralidades cômodas, principalmente por parte dos que continuam a se declarar cristãos, mas que, na prática, não têm consciência desse conflito ou de seu próprio papel enquanto protagonistas da história. Por isso, revelando dotes de romancista, o autor baseia o desenrolar da narrativa sobre o contraste entre pares de personagens, de modo a evidenciar que o drama da liberdade nunca é anulado, mesmo sob circunstâncias fortemente opressivas.

A primeira dupla é formada por dois sacerdotes. Um deles é Percy Franklin, o verdadeiro protagonista da história: apesar das dúvidas que o acometem em mais de uma ocasião, ele permanecerá fiel ao encontro com Cristo até o fim. Já Pe. Francis, seu colega, vive uma crise de fé que o faz abandonar a Igreja em busca de algo mais palpável; embora sobreviva nele certa necessidade de prestar culto a algo superior, essa exigência é reduzida à dimensão puramente cerimonial e posta a serviço dos novos donos do poder.

Oliver Brand, promissor político inglês, e Mabel, sua companheira, representam outro par importante na obra. Ambos partilham o genuíno entusiasmo pelo ideal da Nova Humanidade e a mesma rejeição à antiga religiosidade. Quando as contradições da ideologia dominante despontam, porém, Oliver aceita as convenientes justificativas oficiais a fim de não abdicar do poder recém-conquistado, ao passo que Mabel conserva uma espécie de simplicidade de espírito, cujo resultado é a abertura a um Deus desconhecido, mas pressentido como real.

Por fim, a dupla mais importante do livro é composta pelo já mencionado Percy Franklin e por Julian Felsenburgh, o artífice do acordo de paz com o Oriente, personagem que representa a encarnação dos ideais do humanitarismo. Aclamado como líder mundial por multidões delirantes, este misterioso político norte-americano passa a ser venerado como o messias que guiaria a humanidade rumo a uma nova ordem mundial. É ele também o responsável pela campanha de hostilidade contra a Igreja, justificando com habilidade o uso crescente da violência até o que parece ser a vitória final contra o cristianismo.

Há, contudo, um traço que liga o sacerdote ao tirano. A sintomática semelhança física entre dois, mais que um mero detalhe, é sinal do parentesco existente entre o humanitarismo e os velhos preceitos cristãos. De fato, o novo credo erigido por Felsenburgh apresenta-se como a realização terrena das promessas de paz, harmonia e felicidade, incorporando numerosos termos e conceitos originalmente cristãos – cuidadosamente despojados, porém, de todo nexo transcendente.

Reside aqui, segundo cremos, o aspecto mais relevante e atual da obra. O humanitarismo ateu retratado por Benson apresenta, efetivamente, face generosa e sedutora: a promoção da paz entre os povos, a exaltação do homem, a filantropia e a tolerância às diferenças são, pelo menos na aparência, matérias com as quais todos devem estar de acordo. Sua enganosa semelhança com valores religiosos pode, contudo, borrar as fronteiras entre fé e ideologia, fazendo com que muitos – a começar pelos próprios cristãos – assimilem uma à outra.
O resultado disso é bem conhecido por todos nós: a experiência religiosa passa a ser vivida como mera adesão a uma doutrina ou, o que é mais comum, como sinônimo de um elenco de preceitos morais a serem observados. Constrói-se, em suma, um cristianismo sem Cristo.

Para além da dimensão escatológica, O Senhor do Mundo é um livro provocativo, cuja leitura faz refletir sobre o sentido da presença cristã na história. Mais do que apenas apontar os desvios da mentalidade dominante (como seria possível imaginar numa leitura meramente ideológica ou política do texto), a obra nos convida a depositar a esperança em Cristo. Pois, mesmo num mundo em que tudo parece negá-lo, é Ele próprio que vem ao nosso encontro – e é esta vitória final que constitui o verdadeiro tema do romance.